Três Mulheres e Aparecida

Críticas   |       |    1 de abril de 2008    |    0 comentários

Três experiências cênicas muito diversas

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Foto: Kelly Knevels / Clix.

Embora muita gente esteja mais preocupada em ser vista por um programador do SESC ou em freqüentar o café mais badalado da noite curitibana, eu, que nasci na época errada, ainda acredito que um festival pode ser espaço de encontros potentes e, sobretudo, o espaço daquela sensação esquisita que vem da soma de muitas experiências muito diferentes em muito pouco tempo.

Nesse ponto, não posso reclamar do Festival de Curitiba. Não digo que só vi coisas incríveis, nem muito menos que a organização tenha se esforçado para fomentar estes tais encontros potentes. Ao contrário. Com tantos grupos, tantas diferenças, tantas semelhanças, o diálogo com o público e principalmente entre os grupos poderia render pelo menos mais uma semana só de debates depois do fim do festival. Mas, de minha parte, encontrei, logo no primeiro dia, a sensação de que falei acima e que posso traduzir como mistureba que gera estranheza e uma porção de conclusões.

Primeira peça, primeiro contato com o Fringe. Lá vamos nós, sem preconceitos, andar pelos paralelepípedos do centro de Curitiba até o Espaço Cultural Falec (Faculdade Doutor Leocádio José Correia). Aliás, cabe destacar que a própria sensação de andar num espaço desconhecido já é um acréscimo à percepção do festival e das peças. Nesse local, estava em cartaz Entrevista com um Viajante Recém-Chegado, monólogo de um homem que acaba de bater as botas. Não, nada a ver com Brás Cubas, nem se iluda. Trata-se de um senhor que, já no Mundo dos Espíritos, revê toda sua trajetória medíocre, enquanto é questionado por outros espíritos. Primeira pergunta: se os entrevistadores são tão espíritos quanto o entrevistado, por que este aparece e os outros não?

O rapaz segue contando sua vida, entre projeções de belos quadros que fazem uma obscura referência aos momentos que ele narra. Como pano de fundo, algumas explicações sobre a Doutrina Espírita. Ao final, a explicação do ator de que aquela é uma iniciativa da Faculdade de Teologia Espírita (ahá!) para abrir novas possibilidades de comunicação da doutrina sem tornarem-se “catequéticos”. A idéia, a princípio, parece menos limitadora que muitas iniciativas religiosas, no entanto, o que vi ainda está longe de poder ser chamado de dramaturgia e encenação. Segunda e última pergunta: por que não chamar de palestra?

Dali para o Sesc da Esquina que fica, pasmem!, numa esquina – mais uma esquina desconhecida. No meio do caminho, porém, uma amostra de que a religiosidade pode ser, sim, muito cênica e ritualística. Com tempo sobrando, passei ao acaso por um templo Hare Krishna, o único de Curitiba e, veja a coincidência, era o dia em que eles comemoravam o ano novo (21 de março). A convite, depois de ver o Nando Reis cantando mantras na TV, tirei os sapatos e assisti à celebração e, sem qualquer juízo de valor das crenças deles, posso afirmar que se constroem ali imagens e ações mais ricas e teatrais do que em Entrevista com um Viajante Recém-Chegado. E os “atores” do ritual hare krishna não se denominam atores, nem chamam seu ritual de peça, nem cobram pra entrar. Aliás, também não cobram pra comer. Não no dia do ano novo. E a comida é realmente muito boa.

Alimentada por preparações, incensos e mantras, fui para Três Mulheres e Aparecida (você já estava se perguntando se eu tinha errado o nome da peça na chamada, né?). E tudo o que escrevi até agora vem para tentar explicar por que este monólogo é uma criação artística compromissada e relevante como pesquisa e por que é especial assisti-lo no contexto de um festival.

A peça, que vem com dendê, procura dar um apanhado dos personagens da história do Brasil desde índios até catadores de latinha. Mas nada de “Em 1530, blablablá, blablablá…”. A idéia aqui tem um eixo central que não está nas datas, mas na mulher. No processo da peça VemVai, o Caminho dos Mortos, a Cia Livre pretendia investigar as origens do povo brasileiro em três frentes: povos indígenas, colonizadores europeus e escravos africanos. Para se aprofundar, preferiram ficar apenas com os indiozinhos e fizeram com isso um puta espetáculo. Em termos de profundidade, não, mas em termos de abrangência, o grupo Theatro XVIII (não, não é 19, é 18. Você não sabe ler números romanos, não?) consegue ir mais longe e contemplar todas as influências num único espetáculo e numa única atriz, Nadja Turenko.

No entanto, a criação não é assim tão simples e poderia ser, em si, uma aula pra turma da Faculdade de Teologia Espírita de que uma peça é construída em diversos níveis e por muitos artistas, ainda que seja um monólogo. A sensação é de que estão em cena pelo menos quatro atrizes, uma para cada personagem – as três mulheres e a Aparecida. Mas além das “atrizes-Nadja”, estão em cena o cenário (que, composto por versáteis barris, pode ser um lixão, uma senzala ou uma praia deserta quase que com naturalidade) e, sobretudo, a iluminação e a trilha (que caracterizam cada vida que a atriz traz para a cena e mostram que seus responsáveis buscaram de fato referências para embasar o trabalho).

Diante de tudo isso, quem não pode mesmo passar batido é o “Nêgo Cheroso”, um rato que, apesar de ser de borracha (há controvérsias), é mais personagem do que o entrevistado de Entrevista com um Viajante Recém-Chegado. Aparecida tem com quem falar. Ela não está declamando, está interpretando e sabe muito bem a quem dirige suas falas e com quem divide o jogo cênico. “Você é um rato ou um homem?”, pergunta, a certa altura. Que bom que ele é um rato.

Com alguns ingredientes a menos, a peça poderia até chegar àquele padrão de apresentações em escolas para enfiar na cabeça da pobre criança o que a Tia Marta não consegue de jeito nenhum. A questão é que aqui há detalhes a mais que a fazem passar muito além dessas montagens. Há uma acidez adulta, um questionamento adulto e, sobretudo, um “assumir posição”, uma idéia benéfica de assumir responsabilidades. Então, embora ameace recorrer à Santa Maria Mãe de Deus, Aparecida conclui que quem tem que resolver o negócio por aqui é a gente mesmo, meu nêgo! E destrói toda a obviedade que construíra até então.

Pelos menos 10 artistas envolvidos num monólogo. Além do rato.

 

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