Viver sem Tempos Mortos

Críticas   |       |    26 de maio de 2009    |    58 comentários

Noite elegante, crítico deselegante

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Fotos: Guga Melgar

(Leia também a crítica de Fábio Leal para este espetáculo.)

Uma atriz elegante (aquela, que é incensada pela imprensa em geral como talvez a mais elegante das atrizes brasileiras) entra num palco elegante para fazer seu monólogo elegante sobre a vida de Simone de Beauvoir. Num cenário elegante e minimalista (uma cadeira sobre um tablado de madeira, todos negros, perdidos na imensidão negra do palco) assinado por Daniela Thomas e iluminado pela precisa (trivial, mas elegante) luz constante de Beto Bruel, Fernandona (segundo Gerald Thomas) ou Fernandoca (segundo Bárbara Heliodora) interpreta, com tom didático, contido e elegante, um breve pot-pourri da vida da filósofa e de sua elegante relação amorosa com Jean-Paul Sartre.

A plateia paulistana do Teatro SESC Anchieta reage ao espetáculo com risadas contidas e elegantes, a cada pequena fissura de desmistificação que a atriz abre para a incensada e elegante relação dos dois pensadores-ícone do existencialismo francês. Não, não foram muitas ou consideráveis essas fissuras, mas a plateia paulistana reagia, e por isso, foi elegantemente elogiada pela atriz, ao final do espetáculo, por ser sempre tão calorosa, inteligente e receptiva. Um show de elegância, aquela mulher, quase uma caneta Montblanc.

Independente da qualidade do monólogo (sem cair mais uma vez na encruzilhada clássica da forma do diálogo que o formato estabelece com o público), tamanha elegância só me fez pensar no que poderia significar a declaração que ela deu, uma semana antes, em entrevista para a Folha de S. Paulo, dizendo que no Brasil só se faz um tal de “teatro possível” e que, para ela, hoje em dia, para que o trabalho artístico seja completo, é necessário recorrer ao monólogo. Aí eu faço uma pergunta de apenas duas letras: Oi?

Sem querer acreditar na possibilidade daquela atriz elegante fazer a deselegante afirmação (indireta) de que centenas de companhias e grupos espalhados pelo Brasil não têm um processo artístico “completo” (aliás, que significa isso? teatro patrocinado por um banco vermelhão?), fico pensando no que a dita senhora-grande-dama-do-teatro-brasileiro poderia ter tentado dizer então. Será que ela anda sem grana? Acho que não, afinal, como bem pesquisou o Astier lá no site do Ministério da Cultura, a produção já captou uma quantia de recursos que aposto que a maioria dos grupos por aí considera suficiente para viabilizar produções plenamente “possíveis”. De qualquer maneira, a questão que levanto não é sobre quantias ou sobre deselegantes juízos de valor relacionados ao merecimento. Tampouco é o caso relacionar mais uma vez por aqui os inúmeros aspectos altamente questionáveis da lei Rouanet (que, ironicamente, segundo Fernanda nessa mesma entrevista, não precisa ser reformada): apenas gostaria de entender o que torna este elegante espetáculo minimalista mais “possível” do que tantos outros.

Pode ser também que minha deselegância seja pelo fato de eu estar sendo cri-cri com uma leitura distorcida, quando ela, na verdade, queria se referir à “impossibilidade” de conseguir ingressos para a temporada. Aaaaaah, não acho que foi isso que foi dito, mas vamos fazer de conta que foi. Aí entramos mesmo numa outra questão. Não apenas porque a elegante temporada mal começou e já está tudo esgotado (como já era de se esperar, ora pois), mas também porque quando abriram as vendas para todas as apresentações, já estavam “indisponíveis” TODOS os ingressos centrais das primeiras fileiras, o que daria algumas boas dezenas de lugares por dia reservados aos convidados dos elegantes patrocinadores (eu chutaria algo por volta de 1/3 da lotação do teatro, ocupando todos os melhores assentos) – isso sem contar a questão do valor do ingresso (no site do MinC, uma das defesas presentes no resuminho do projeto era que os ingressos custariam de 10 a 20 reais, enquanto no SESC, vai de 7,50 a 30). Mas beleza, não li o projeto inteiro – só a informação publicada nos site – e, portanto, posso estar torcendo o nariz de chato que sou. Mas sou chato mesmo e torço o nariz mesmo.

E vale ressaltar também que isso nada tem a ver com o espetáculo propriamente dito. Durante a uma hora que olhamos para aquela senhora sentada em sua cadeira (coroada por uma chaminé preta de ponta-cabeça, é verdade), presenciamos um minucioso processo de construção de uma personagem que, num primeiro momento, mais parece uma declamação em primeira pessoa de um texto mecanicamente decorado. Mas com o passar do tempo, esse aspecto mecânico revela partituras mínimas, delicadas, precisas, e aos poucos vamos vendo a Zazá (desculpa, foi inevitável lembrar dessa novela em dado momento do monólogo) se convertendo numa voz que, sem a pretensão de mimetizar a histórica pensadora, conduz o público por lampejos de uma vida inteira em 60 minutos. Enfim, teatrão como todo mundo já sabia, com uma atriz cujo trabalho todo mundo já conhece, com um rigor que já era possível de se imaginar, e um tradicionalismo na construção da montagem que já era bastante previsível. Nada muito diferente do já era esperado por todos que foram ao Teatro Anchieta para ver a atriz que há anos não pisava num palco.

Fato é que, após assistir ao elegante teatrão da Fernandona, o que mais me perturbava ainda era a tentativa de descobrir o que significa, de fato, esse tal de “teatro possível”. Não apenas porque essa expressão no fim das contas soa bem, mas porque Fernanda Montenegro talvez abra uma chave para compreender a cena teatral brasileira – porque afinal o teatro no Brasil está a anos-luz de ser idealmente “possível”, isso também não dá pra discordar. Mas já que foi ela quem levantou a questão, gostaria muito de saber o que nossa elegante amiga sugere para mudar esse quadro, porque na entrevista ficou uma sensação de conformismo cômodo, de quem não está realmente preocupada em tornar as coisas mais “possíveis”. Pena que na entrevista publicada na Folha, em vez de esmiuçar um pouco mais esse tema, logo após essa declaração, eles mudam de assunto e pedem pra elegante atriz mandar conselhos para Rodrigo Santoro e Alice Braga, afinal eles estão em Hollywood. Enfim.

Mais vale um monólogo possível na mão do que uma peça de grupo voando

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'58 comentários para “Viver sem Tempos Mortos”'
  1. Mas gente, calma!
    Cadê a festividade?? Não tinha um lado que tinha isso??
    Hahahaha

  2. Paulo Bio disse:

    Oi Astier,
    Sobre a frase do FHC, vc tem razão, suas origens são bem obscuras. Ele nega. Uns contam essa versão. Outros o contrário. Mas é uma frase-emblema, como vc disse, que representa um período histórico e, particularmente, a postura política de um cara com ideias, no papel, tão díspares de sua prática neoliberal. Não quis denegrir a imagem do FHC, mas retomar a questão do seu governo que rompeu com toda e qualquer pensamento “a esquerda” contido em sua obra. Foi só a maneira de contrapor-se a afirmação de que ele era “o ápice da esquerda”. A frase, real ou não, carrega um sentido bem claro de que o PSDB já havia rompido com qualquer tendência de esquerda muito antes da aliança com o PFL pra vencer as eleições de 94. Ou seja, não procurei julgar o cara pela frase, usei a frase justamente pelo emblema que ela representa. (eu acredito bastante que a frase é real; pois a coincidencia para com o desenrolar histórico é imensa)

    Sobre o congresso não quis dizer que há polarização. Mas quis dizer que não há “horizontalização” nenhuma. (mas vc tem razao que a frase parece outra coisa).

    Sobre a desilução com as esquerdas. Eu não apenas entendo como compactuo firmemente com vc Astier. Eu ainda faço parte do ME e vejo violências tremendas dos grupos aparelhados pelos partidos, PSTU, PCO, PT, PMDB…. (o PC do B, felizmente, mantém-se inerte e satidfeito com seu palácio na UNE)
    Não procurei com o comentário polarizar as coisas, mas simplesmente afirmar que os lados (por mais diluidos que possam parecer) existem e atuam. Negá-los me soa sempre como a reprodução desse disseminado “niilismo político”

    Mas eu acho que a reprodução ideológica do PT no governo não pode ser vista como a prova cabal do “tudo farinha do mesmo saco”. (embora sempre digam isso) Existe ainda pensamento político diverso; há diferença substancial no discurso do DEM para o PT (mesmo aliado do PL), por exemplo (mesmo estando defendendo praticamente a mesma ideologia de mercado). Quando surgiu o escandalo do mensalao o Jorge Bornhausen (PFL, na época) disse sobre o PT:”essa raça vai acabar” (vê? Há oposições tão grandes, ideológicas, que quase raças… )

    Essa homogeneização que fazem (tipo, o PT que sempre prezou pela ética fez o mensalão, que sempre disse contra isso mas fez tbm etc etc etc) é uma tentativa de sempre diluir o pensamento político e colocar tudo no nível da prática contraditória. Mas as diferenças são enormes!
    A Folha disse que vivemos uma ditabranda (e não existe direita?).
    Por mais desetimulador que possa parecer o jogo político há diferenças muito amplas e consideráveis.

    E o pensamento de esquerda não pode ser diminuido a partir da prática, muitas vezes medíocre, de grupos e partidos que levantam suas bandeiras.
    Isso é o que querem que façamos.

    É tipo dizer que o marxismo é uma merda pois Stalin matou milhões. Há pensamento, e há eternas hipocrisias.

    me agrada muito esse assunto e eu realmente entendo tua posição Astier, mas vamos mesmo precisar de horas no bar pra aprofundar tudo isso, como eu acho que merece.
    E só vamos conseguir quando estivermos bebados demais pra lembrar no outro dia…

    abraço!

  3. Antes de tudo só queria comentar sobre a questão da Zazá…não posso falar isso pra qualquer um, se não me marcariam a testa com um louca! Mas, sempre que eu vejo a Fernanda me remete a este personagem; detalhe que odiei a novela e tudo que tem a ver com ela.

    Quero mais assistir este espetáculo pra confirmar, ou não, minhas suspeitas para com Fernanda. Dessa ótima atriz que ouço dizer as quatro cantos, mas que não pude comprovar com os meus olhos.

    To na batalha pra conseguir um ingresso; batalha quase perdida, mas…

  4. Depois de alguns dias olhando pra foto da Fernandoca na home, reparei que ela é ligeiramente estrábica.
    Ou o fotógrafo mandou muito mal no cotoxó.

  5. Eu achei que ela era estrábica, durante a peça. Mas depois percebi que, na verdade, eu é que sou míope e ela estava com um daqueles “elegantes” microfones minúsculos pregado no rosto.

  6. Juli =) disse:

    Depois de longo período de exílio em paralelepípedos mineiros, venho dar uma de Caetano… gente ‘eu acho lindo’ essa gente linda aqui discutindo e marcando a cerveja. Que bom que existe internet! Imaginem como faríamos pra marcar o buteco pelas Cartas do Leitor da Folha!!!

    Agora, queridos, tenho algumas sugestões sérias:

    1. Adotar o codinome Zazá, em homenagem ao comentário da Marilia (Sim, Marília, pra nós vc pode falar! Fique à vontade), principalmente porque eu também tenho essa imagem horrível nos meus pesadelos.
    2. Fazer uma gincana em homenagem ao Otávio. Adorei a comparação – que me pareceu, em si, uma bela crítica à nossa maneira às vezes tão “surdinha” de discutir.
    3. Butecos semanais (ou duas, três vezes por semana…) com Original e outras pra nos prepararmos pra vinda do Astieca. Nestas reuniões poderemos mandar os outros tomarem no cú e depois considerá-los pra caralho – ou não; discutiremos de novo o FHC, as CPIs e as greves da USP; obrigaremos o Valmir e o Marco (este colaborador lacônico) e tomar a cerveja possível; daremos beijos na bunda do Valmir; nos chamaremos de “amor” e nos daremos novos apelidos cada vez mais carinhosos e escreveremos manifestos que rasgaremos em seguida por nunca serem suficientemente completos.

    Beijos,
    Juli =)

  7. Valmir Jr. disse:

    Opaaaaaaaaa, beijos na minha bunda? Possível ou não?

  8. Stace disse:

    mas nada paga o “…quase uma caneta Montblanc…”. Golpe de mestre! um bjo Mau!

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