Cock e Aos Nossos Filhos

Críticas   |       |    25 de outubro de 2013    |    0 comentários

Sobre o desencontro de temas e formas

Quando converso com alguns amigos que vão pouco ao teatro, já notei algum padrão de avaliações usando um critério bem específico: “gostei de tal peça porque tal ator trabalhava bem”, “tal atriz está ótima em tal personagem”. Não é de se estranhar esse comentário, visto que muitas vezes a expectativa de certa parcela do público ao ir ao teatro é simplesmente a de ver uma história interpretada com atores ao vivo. Se o que difere o teatro do cinema ou da TV é o fato dos atores estarem em carne e osso ali, de frente para o público, a expectativa é a de que eles “sejam bons”, ou “trabalhem bem” – às vezes tenho a impressão de que foi isso que o teatro comercial “treinou” o público a observar quando decidem sair de suas casas num sábado à noite para fazer um programa “diferente”.

E um critério razoável para evidenciar se um ator “trabalha bem ou não” é um texto que potencialize suas virtudes, diálogos rápidos e inteligentes, que permitam ao público que verifiquem in loco, ao vivo, como o ator interpreta “bem” os diálogos. Não foram poucas as vezes que ouvi algo como “esse diálogo ficaria ótimo no teatro”, no sentido de “esse texto ficaria ótimo sendo interpretado ao vivo por dois atores bons”. Minha visão preconceituosa desses chavões me fazem pensar no quanto ainda tem muita força um registro dramático, tradicional, que corresponda àquele velho clichê do “bom teatro são bons atores dizendo um bom texto”.

Não acho que essa frase seja de todo equivocada, mas essa expectativa de “assistir a um bom diálogo sendo bem interpretado” limita-se apenas ao que acontece no palco, quando cada vez mais eu, pessoalmente, tenho buscado um outro tipo de diálogo, que é o dos artistas com seu público, e dessa convergência de artistas + público + o momento em que esse encontro acontece (Em que cidade? Em que contexto? O que está em debate? Quais são as feridas não cicatrizadas dessa sociedade em que eles vivem? De que forma esse encontro lida com essas feridas? De que forma essa provocação se estabelece para ser percebida e provocar alguma reflexão?). Isso não se aplica apenas ao teatro, mas às artes em geral, à crítica e à produção de um pensamento que dê conta de nos fazer pensar o tempo/espaço em que vivemos.

Para fazer essa leitura, pessoalmente tento isolar adjetivações e buscar intenções, motivações que justificam algum empenho de alguns artistas a escrever, ensaiar e apresentar tais obras. Ninguém faz nada sem um motivo. Pensando nisso, fazer a avaliação formal dos atores, do texto, da encenação ou dos recursos técnicos não basta. Podemos ter atores tecnicamente impecáveis, com um texto de diálogos brilhantes – mas se a produção não tiver o intuito de estabelecer um debate (estou falando de debate, de pulga atrás da orelha, não de moral da história) com quem está compartilhando do mesmo tempo, do mesmo espaço e das mesmas questões que a montagem se propõe a discutir, a montagem interessa muito pouco a mim.

No começo do ano, assisti na Argentina a uma peça que me fez pensar justamente esse embate. Cock, texto de Mike Bartlett, dirigido pelo diretor-coqueluxe Daniel Veronese, propunha uma discussão da sexualidade na sociedade contemporânea (para ser mais preciso, na sociedade de classe média-alta em uma família essencialmente burguesa em uma metrópole qualquer). Na história, um jovem gay, vivendo de acordo com o clichê do padrão de vida do homem moderno urbano (em um apartamento bem-localizado, com um parceiro bem-sucedido, com “bom” gosto por design, vinhos, moda) vê-se atraído por uma mulher – e entra em crise com sua sexualidade, sua identidade e com todas as pré-concepções que moldam seu comportamento e suas atitudes. Ele tem muito pouco protagonismo em sua vida porque vive em função de imposições de seus círculos sociais. Como lidar com esse desejo inesperado quando toda a sua vida já foi moldada de acordo com outros padrões de comportamento?

Por ter dinheiro em uma cidade cosmopolita no século XXI, ele não precisou necessariamente enfrentar grandes lutas para ser quem ele é – apesar de ainda enfrentar seus fantasmas, pode-se dizer que ele vive um desafio psicologizado, da luta solitária do indivíduo contra si mesmo, quase como se ele estivesse destacado de qualquer sociedade que não estivesse intimamente ligada à sua vida privada. Não há pertencimento a qualquer coletividade que não a de seu restrito círculo familiar-afetivo. Seus fantasmas estão isolados em um cemitério privado, sem vizinhos.

A forma que a montagem assumia correspondia justamente ao ideal de “bom teatro” que mencionei no início. Um bom texto, com diálogos sagazes, que permitem que os atores sejam ágeis e provem a seu público que “trabalham bem”. A direção de Veronese era o que Bárbara Heliodora (tava com saudades de fazer piadas com a vó) adjetivaria como “correta”, neutra, impessoal, que dá conta de garantir um ritmo aos personagens, mas que não se aprofunda em ressignificações ou proposições formais mais ousadas como em suas releituras de Tchekhov.

Essa análise da forma serve-me para fazer um paralelo com um aspecto que me chamou mais atenção do que a crise psicológica e individualizante do protagonista. Em determinado momento, surge o personagem mais contraditório da trama, o sogro do protagonista. Surpreendentemente a narativa não cai no contraste previsível do conflito de gerações, do pai tradicional que não aceita ou não compreende a sexualidade do filho ou sua relação com o protagonista. Ao contrário, o pai assume uma posição política mais progressista do que o filho e seu parceiro – ele seria a voz da consciência de uma geração que teria lutado contra uma visão repressora e violenta por direitos individuais plenos, por ideais democráticos e de igualdade.

No entanto, apesar de levantar com orgulho a bandeira da defesa da diversidade, por outro lado o pai assume o contraditório discurso da defesa de sua família em primeiro lugar, de uma diferenciação de classe sutil que se manifesta na hora de comparar seu filho (bonito, educado, inteligente, elegante) com a mulher por quem o coração de seu genro se divide (menos culta, menos rica – menos digna, portanto). Para mim, essa era a oportunidade de despsicologizar e desindividualizar a narrativa para estabelecer um diálogo mais aberto com o tempo e o lugar onde a trama se estabelece – mas a forma do “bom texto com bons atores” parece suficiente para não precisar entrar nessa seara – e isso pareceu ser bastante satisfatório para o público igualmente culto, cosmopolita, educado que assistia àquela peça num arborizado complexo de teatros comerciais, restaurantes e lojas na avenida Corrientes.

Resgato a memória dessa montagem para fazer um paralelo com Aos Nossos Filhos, de Laura Castro, que vi em junho em São Paulo sob direção de João das Neves e com a autora e a atriz portuguesa Maria de Medeiros no elenco. Nessa peça, uma mãe ex-combatente da ditadura recebe a visita de sua filha lésbica que vem trazer-lhe a notícia de que, junto com a parceira, será mãe. O texto utiliza-se de um diálogo, em registro formal absolutamente dramático, para estabelecer o conflito entre duas gerações e dois ideais de liberdade. A da mãe, ex-exilada, ex-guerilheira, defensora da autonomia dos indivíduos e das lutas contra opressões; e a da filha, cuja luta é pela defesa de sua própria causa e realidade, do direito de conduzir sua vida privada independente de regras e parâmetros sociais, de estar casada com a pessoa que ama, de estabelecer sua família sem julgamentos externos.

O conflito do diálogo aproxima-se muito da contradição do sogro do protagonista de Cock: assim como ele, a mãe também não consegue conciliar os valores e ideias coletivos defendidos no passado com a necessidade de proteção, posse e normatização quando esses valores interferem no microcosmo de dentro de casa, da família, do privado. Um personagem não aceita que o filho seja substituído por alguém “inferior”, a outra não compreende que a vida da filha fuja dos padrões heteronormativos e da divisão de gêneros (que eram aceitáveis somente da porta de casa para fora). Para a mãe, é frágil a ponte direta entre sua luta contra a opressão política e militar, concretas, e a luta contra opressões simbólicas e culturais, abstratas.

Ao mesmo tempo, ambos os filhos têm comportamentos que não se projetam a nenhuma coletividade. Não existe uma bandeira dos direitos de ninguém mais além de seus próprios interesses individuais – ambos têm dinheiro, têm boa educação, construíram suas vidas e suas lutas são apenas no sentido da satisfação de suas vontades particulares (de ter a pessoa amada, de ter um filho, de estabelecer seu núcleo familiar). Ambas as peças apontam para um padrão de vida desconectado da vida que acontece fora dos muros de casa, para além do portão do condomínio. A questão da sexualidade, resolvida ou não, diz respeito ao indivíduo (não a uma coletividade que sofre dos mesmos preconceitos). As evoluções legais, sociais, da medicina, só beneficiam a vida do personagem em questão, que jamais se compara a outra pessoa, como se ele fosse único e exclusivo, como se essas pequenas vitórias não interessassem a mais ninguém.

Propondo um pouco de prescritivismo, de minha parte – não tanto de como o teatro deve ser, mas de que tipo de teatro me interessa -, saí frustrado de ambas as apresentações por ter visto personagens tão potentes sendo isolados no contexto privado, individualizante, perdendo a oportunidade de estabelecer um diálogo mais provocativo com as pessoas que vão ao teatro para compartilhar um mesmo pedaço de espaço e um mesmo pedaço de tempo. Perde-se, assim, a oportunidade de provocar reflexões mais profundas, estabelecer alguma crise, buscar alguma forma que projete as angústias dos personagens para fora do espectro dramático ficcional, que projete no público reconhecimentos e estranhamentos que não estejam no âmbito da individualidade, mas da coletividade. Talvez eu esteja mal-acostumado com montagens que consigam estabelecer alguma ruptura que consiga ser mais forte do que a sensação confortável e contemplativa de ver nada mais do que “um bom texto” sendo interpretado por atores que “trabalham bem”. Ou talvez a escolha pelo registro dramático tradicional me interesse menos quando essa forma parece se estabelecer a priori, como um caminho ‘natural” a ser seguido (e não uma linguagem escolhida propositadamente, com objetivos propositais).

2 personagens que não se projetam para 2 bilhões

“Cock” foi vista em janeiro de 2013 no Paseo La Plaza, Buenos Aires. Infelizmente, não me lembro o valor pago pelo ingress0. “Aos Nossos Filhos” foi vista em 15 de junho de 2013 no teatro do Sesc Santana, com ingresso a R$ 12,00 – meia entrada (estudante).

(Foto: Irene Nóbrega/Divulgação)

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