Este lado para cima

Críticas   |       |    2 de abril de 2011    |    3 comentários

Por mais dialética na guerrilha

Observação: Este texto foi escrito originalmente para a Revista da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas de 2010 e será publicado ali quando do lançamento da mesma em 2011

 

Fotos: Neander Heringer, apresentação na Vila Operária da Fábrica Ocupada Flaskô dia 24 de março de 2011

 

A Brava Companhia é um dos belíssimos exemplos de uma gradual e revolucionária transformação na geografia teatral da cidade de São Paulo. Alinha-se aos inúmeros grupos e coletivos de teatro que vem surgindo (ou melhor, fortalecendo-se – impulsionados pela Lei de Fomento ao Teatro) nas margens da cidade. O grupo faz parte dessa alteração substancial do cenário artístico paulistano, ao mesmo tempo em que trabalha na contramão da cultura hegemônica. De modo que, além de alterar os paradigmas produtivos da cultura de classe, ao fazer da periferia seu centro de atuação, a Brava subverte as velhas orientações estilísticas na criação teatral e, assim como a grande maioria de tais coletivos periféricos, se movimenta esteticamente a partir de combustível político em seu árduo trabalho de guerrilha na busca por um teatro cujas formas e assuntos se materializem pelo contato direto com as massas populares.

No espetáculo Este lado para cima – isto não é um espetáculo, a Brava Companhia mostra uma colagem de vários fragmentos exemplares sobre a opressão e controle do povo pelas elites na sociedade do espetáculo (o grupo vale-se da obra de Guy Debord como referência teórica).

(Foto da apresentação na Vila Rubi em agosto de 2011)


Permeando os fragmentos, desenvolve-se a história da construção de uma enorme “bolha”, que cobrirá toda a cidade e no alto da qual os grandes capitalistas residirão e gozarão eternamente dos prazeres da vida, enquanto a turba popular, com seu penoso trabalho produtivo, sustentará a estrutura. Esta imagem de nossa realidade desigual e baseada na exploração de uma classe (improdutiva) sobre a outra (produtiva), apresenta, todavia, as personagens dos capitalistas como seres possuidores de uma exagerada consciência das engrenagens de exploração, isto é, são inescrupulosos acumuladores hedonistas, maldosos manipuladores da massa em favor de seus privilégios, calculistas operadores da máquina ideológica que ludibriará os trabalhadores e manterá em funcionamento seu perverso mundo opressor. Os capitalistas assemelham-se aos vilões (ávidos pela dominação do mundo) dos velhos filmes de ação e ficção da indústria cultural hollywoodiana. Contudo, tal consciência escancarada do sujeito falseia as complexas engrenagens do capitalismo e corre o risco de deslocar o problema sistêmico para o nível moral de condenação maniqueísta do indivíduo.

A suposta confusão se dá, talvez, por uma indefinição formal na representação. Na busca por representar a constante luta de classes em que o Capital, que detém os meios de produção material, explora (ou suga, assim como um vampiro, na famosa imagem de Marx) o verdadeiro trabalho produtivo (o sangue) da classe trabalhadora, a Brava gravita entre a alegoria e o indivíduo. De modo que, quando pretende representar “O Capital” acaba representando “O Capitalista”. Só que a transfiguração de uma classe em seu sujeito objetivo não tem, aqui, possibilidade metonímica (a parte pelo todo), pelo contrário, cria a ilusão de que “O Capital” é igual a “O Capitalista” – e não de que “O Capitalista” é a imagem alegórica “d’O Capital”, como parece ter sido o objetivo do grupo.

A denúncia, então, se torna simplista e irreal, pois não representa a opressão intrínseca da máquina do capital e tende a representar tal exploração como sendo fruto unicamente (e especificamente) de maldosos capitalistas cobiçosos do acúmulo infinito. Seguindo esta lógica, se os capitalistas, porventura, fossem bons e comprometidos com a humanidade, não haveria exploração. O que, sabemos, não é verdade, basta lembrar, por exemplo, de Sérgio Buarque de Holanda e da cordialidade brasileira.

O perigo, portanto, desta indefinição formal é criar imagens falsas do problema ao invés de contribuir para a compreensão popular das engrenagens da realidade criticada.

 

(Foto da apresentação no canteiro de obras do Condomínio Vanguarda em Santos – um conjunto habitacional construído por trabalhadores organizados da União Nacional por Moradia Popular. Na Mostra do grupo Olho da Rua em fevereiro de 2011).


Contudo, é louvável a inquietação do grupo em desmontar a maquinaria ideológica e des-naturalizar as estruturas sociais que nos circundam (“as coisas não são assim, elas ficam assim”). Seu teatro de agitação, esquemático, materialista e no espaço público da rua é um instrumento político de luta e resistência – não por acaso, tais procedimentos são alvos constantes de eterna desqualificação pela ideologia dominante. Mas é justamente por encampar este teatro na contramão, de vanguarda (por que não?), é que se tem como dever aprofundar radicalmente a dialética de seus assuntos e buscar incessantemente a forma dialética que congregue tal disposição política.

Fotos: Neander Heringer, apresentação na Vila Operária da Fábrica Ocupada Flaskô dia 24 de março de 2011

A peça foi vista na Praça do Patriarca na Mostra de teatro de rua Lino Rojas, em 2010; e na IX Semana de teatro e educação na USP dia 23 de novembro de 2011.

Cotação:

+1 grupo em luta (produtiva e política) na contramão da cultura dominante e hegemônica. A cultura que “para a imensa maioria”, “é apenas o adestramento que permite manejar uma máquina” (Marx)

Mais na Bacante:

Crítica da peça A Brava

Sobre a Cia.:

Blog da Brava

'3 comentários para “Este lado para cima”'
  1. Leo Santolli disse:

    O que fazer com este desejo ardente de ver a peça ?

  2. jeff disse:

    Olás! Assisti a peça da Brava na Vila Operária da Fábrica Ocupada Flaskô, no último dia 24. Gostei bastante, esse “novo” teatro da Brava é fundamental! A peça dá a entender em vários momentos que o problema é estrutural, mas concordo com o Paulo que a excessiva personificação moral dos donos da esfera junto com a solução final terrorista podem reduzir a importância da causa estrutural e da organização coletiva… uma possibilidade, talvez, fosse num outro final paralelo em que o terrorista consegue matar os donos, mostrar como as coisas se restabelecem… Abraços, jeff

  3. Paulo V. Bio Toledo disse:

    Oi Jeff. Acho que você tem razão, se, no final, a estrutura que deu origem a bolha se restabelecesse, após os capitalistas serem mortos pelo terrorista (pois as engrenagens mantém-se, a despeito de morte de seus articuladores), poderia ampliar a ideia alegórica do Capital e problematizar a questão da luta. É uma boa ideia.
    Valeu pelo comentário,
    um abraço, Paulo

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