La Razón Blindada

Críticas   |       |    17 de setembro de 2009    |    3 comentários

Falando com os umbigos

La razon - Douglas soares

Foto – Douglas Soares

Uma vez um amigo disse que falava de si em suas peças para tentar entender a si próprio melhor. Peraí, o teatro virou terapia? Ele então me respondeu que mesmo montando Shakespeare, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos ou Heiner Müller nos palcos, no final das contas é sobre nós mesmos que estamos rindo ou chorando.

Vai ver que pensa assim o Aristides Vargas, um argentino que foi morar no Equador a contra-gosto, visto que foi exilado de seu país por conta da ditadura. Ele é aparentemente a cabeça principal do grupo Malayerba do Equador, o único grupo estrangeiro participante do I Festival Latino-Americana de Teatro de Uberlândia – Ruínas Circulares cujo trabalho já conhecia, e tem a fama de falar sobre as relações de poder em seus espetáculos.

Quando assisti La Muchacha de los Libros Usados no FIT-BH em 2008 fiquei meio tonto com a mistura de uma encenação extremamente rígida (tipo a Cia. Sutil), com uma cara de estamos improvisando tudo (meio Grupo Galpão), com apelo político (com toques de Cia. do Latão), e um deboche bem relaxado (aquela coisa “tô nem aí” dos Parlapatões), envolvendo as relações de poder impostas pelo Estado, militares, família e comunidade. As imagens das figuras enroladas em gazes, as maçãs esmagadas com botas e os chavões como “Anotem!” e “heroína clássica” ainda me assustam em pesadelos.

Então, apesar de toda a espectativa, La Razón Blindada não me causou o mesmo efeito que o primeiro espetáculo. O que formalmente outrora foi uma novidade, agora permitia outro tipo de contato entre espectador e palco, deixando assim uma excitação depois de dez minutos de espetáculo.

No palco dois homens que aos poucos vamos descobrindo que estão presos em algum lugar e se encontram todos os domingos para brincarem de Dom Quixote e Sancho Pança. Eles precisam de um herói e o cavaleiro andante aparentemente é o mais indicado para fugir daquele lugar. O personagem louco e, portanto, livre das amarras sociais, é o oposto da situação em que vivem, visto que estão privados de sua liberdade. Fugir às regras sociais, como lutar com moinhos, prometer uma ilha ao seu fiel escudeiro, se apaixonar por uma Dulcinéia intangível, não usar álcool em gel ao entrar teatro, é como resistir a tudo o que o poder absoluto (junte igreja, exército, governo, escola, patrão e todo mundo que te oprime e joga no liquidificador) impõe. Assim, o que poderia ser uma metáfora entre o clássico de Cervantes e os presos políticos argentinos, se potencializa em um espetáculo que discute até onde o poder de escolha dos homens determina suas vidas.

A linearidade presente na história da heroína clássica que sofre mais que a Maria do Bairro de La Muchacha de los Libros Usados dá lugar a um amontoado de cenas onde assuntos comuns, através de metáforas, extrapolam o terreno da normalidade transformando em resistência. Quixote convence que Sancho Pança é um cachorro e esse mostra o quão ruim é ser o melhor amigo do homem. A conectividade de relações entre magreza, cavalos, morte, Deus e excitação sexual revela que quando somos privados do direito de expressão coisas consideradas banais passam a fazer parte de um círculo vicioso que definha o homem.

A força política da dramaturgia que saía da boca dos atores, que sequer podem levantar de suas cadeiras (e deslizam pelo palco com suas rodinhas) leva involuntariamente a uma associação com Neva, o espetáculo chileno, em que três atores trancados em um teatro ensaiam uma peça, enquanto a revolução russa acontece lá fora. Aristides se apropria de um texto clássico para fazer um “teatro engajado”, mas se permitindo debochar de tudo e de todos, enfiando cacos em seus diálogos (portanto quem acompanha a legenda projetada no fundo do palco acaba perdendo boa parte dos improvisos dos atores), e utilizando da metalinguagem consegue o distanciamento, buscando atingir, mesmo com o claro o posicionamento político, a catarse do espectador.

E quando o público começa a fazer parte do espetáculo, o projetor, que antes servia como um suporte de texturas e cores, traz pra cena um vídeo explicativo pra finalizar a coisa, mostrando a prisão da Argentina, onde os prisioneiros faziam jogos teatrais com textos clássicos como forma de resistência. Acaba virando algo tipo o Zezé de Camargo e Luciano indo até a casinha onde nasceram e depois cantam “É o amor” no final do filme Os dois filhos de Francisco. É aí que o bicho pega, porque o vídeo serve como uma legenda (não aquela que nem sempre era sincronizada e traduzia o espanhol para o português durante a peça) de tudo o que já vimos. E as coisas que fizeram rir ou chorar porque era tão próximo ao espectador, que constantemente é aconselhado a ser tão bonzinho quanto um cachorro (o melhor amigo do homem) joga o foco na realidade do exilado. E o teatro corre o risco de virar documentário quando a potencialidade da reflexão cai no didático.

60% do Teatro Ocupado (o permitido pelo Comitê de Prevenção à gripe A(H1N1)) Cuidado!

'3 comentários para “La Razón Blindada”'
  1. Douglas disse:

    e mais uma vez, eu me divido entre fotografar, assistir a peça, e um leve arrependimento por ter falado uma besteira pra minha namorada!!!!
    hummm, gosto muito do que vc escreve…

  2. e a gente aproveitando o resultado de sua diversão pra ilustrar a crítica!
    agora, quanto a besteiras pra sua namorada… pode por na roda? heheheheh

  3. […] inclui-se a peça La Razón Blindada, apresentada no festival no dia anterior a esta conversa. Baseada na relação de presos políticos […]

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