La Razón Blindada
Falando com os umbigos
Foto – Douglas Soares
Uma vez um amigo disse que falava de si em suas peças para tentar entender a si próprio melhor. PeraÃ, o teatro virou terapia? Ele então me respondeu que mesmo montando Shakespeare, Nelson Rodrigues, PlÃnio Marcos ou Heiner Müller nos palcos, no final das contas é sobre nós mesmos que estamos rindo ou chorando.
Vai ver que pensa assim o Aristides Vargas, um argentino que foi morar no Equador a contra-gosto, visto que foi exilado de seu paÃs por conta da ditadura. Ele é aparentemente a cabeça principal do grupo Malayerba do Equador, o único grupo estrangeiro participante do I Festival Latino-Americana de Teatro de Uberlândia – RuÃnas Circulares cujo trabalho já conhecia, e tem a fama de falar sobre as relações de poder em seus espetáculos.
Quando assisti La Muchacha de los Libros Usados no FIT-BH em 2008 fiquei meio tonto com a mistura de uma encenação extremamente rÃgida (tipo a Cia. Sutil), com uma cara de estamos improvisando tudo (meio Grupo Galpão), com apelo polÃtico (com toques de Cia. do Latão), e um deboche bem relaxado (aquela coisa “tô nem aÆdos Parlapatões), envolvendo as relações de poder impostas pelo Estado, militares, famÃlia e comunidade. As imagens das figuras enroladas em gazes, as maçãs esmagadas com botas e os chavões como “Anotem!†e “heroÃna clássica†ainda me assustam em pesadelos.
Então, apesar de toda a espectativa, La Razón Blindada não me causou o mesmo efeito que o primeiro espetáculo. O que formalmente outrora foi uma novidade, agora permitia outro tipo de contato entre espectador e palco, deixando assim uma excitação depois de dez minutos de espetáculo.
No palco dois homens que aos poucos vamos descobrindo que estão presos em algum lugar e se encontram todos os domingos para brincarem de Dom Quixote e Sancho Pança. Eles precisam de um herói e o cavaleiro andante aparentemente é o mais indicado para fugir daquele lugar. O personagem louco e, portanto, livre das amarras sociais, é o oposto da situação em que vivem, visto que estão privados de sua liberdade. Fugir à s regras sociais, como lutar com moinhos, prometer uma ilha ao seu fiel escudeiro, se apaixonar por uma Dulcinéia intangÃvel, não usar álcool em gel ao entrar teatro, é como resistir a tudo o que o poder absoluto (junte igreja, exército, governo, escola, patrão e todo mundo que te oprime e joga no liquidificador) impõe. Assim, o que poderia ser uma metáfora entre o clássico de Cervantes e os presos polÃticos argentinos, se potencializa em um espetáculo que discute até onde o poder de escolha dos homens determina suas vidas.
A linearidade presente na história da heroÃna clássica que sofre mais que a Maria do Bairro de La Muchacha de los Libros Usados dá lugar a um amontoado de cenas onde assuntos comuns, através de metáforas, extrapolam o terreno da normalidade transformando em resistência. Quixote convence que Sancho Pança é um cachorro e esse mostra o quão ruim é ser o melhor amigo do homem. A conectividade de relações entre magreza, cavalos, morte, Deus e excitação sexual revela que quando somos privados do direito de expressão coisas consideradas banais passam a fazer parte de um cÃrculo vicioso que definha o homem.
A força polÃtica da dramaturgia que saÃa da boca dos atores, que sequer podem levantar de suas cadeiras (e deslizam pelo palco com suas rodinhas) leva involuntariamente a uma associação com Neva, o espetáculo chileno, em que três atores trancados em um teatro ensaiam uma peça, enquanto a revolução russa acontece lá fora. Aristides se apropria de um texto clássico para fazer um “teatro engajadoâ€, mas se permitindo debochar de tudo e de todos, enfiando cacos em seus diálogos (portanto quem acompanha a legenda projetada no fundo do palco acaba perdendo boa parte dos improvisos dos atores), e utilizando da metalinguagem consegue o distanciamento, buscando atingir, mesmo com o claro o posicionamento polÃtico, a catarse do espectador.
E quando o público começa a fazer parte do espetáculo, o projetor, que antes servia como um suporte de texturas e cores, traz pra cena um vÃdeo explicativo pra finalizar a coisa, mostrando a prisão da Argentina, onde os prisioneiros faziam jogos teatrais com textos clássicos como forma de resistência. Acaba virando algo tipo o Zezé de Camargo e Luciano indo até a casinha onde nasceram e depois cantam “É o amor†no final do filme Os dois filhos de Francisco. É aà que o bicho pega, porque o vÃdeo serve como uma legenda (não aquela que nem sempre era sincronizada e traduzia o espanhol para o português durante a peça) de tudo o que já vimos. E as coisas que fizeram rir ou chorar porque era tão próximo ao espectador, que constantemente é aconselhado a ser tão bonzinho quanto um cachorro (o melhor amigo do homem) joga o foco na realidade do exilado. E o teatro corre o risco de virar documentário quando a potencialidade da reflexão cai no didático.
60% do Teatro Ocupado (o permitido pelo Comitê de Prevenção à gripe A(H1N1)) Cuidado!
e mais uma vez, eu me divido entre fotografar, assistir a peça, e um leve arrependimento por ter falado uma besteira pra minha namorada!!!!
hummm, gosto muito do que vc escreve…
e a gente aproveitando o resultado de sua diversão pra ilustrar a crÃtica!
agora, quanto a besteiras pra sua namorada… pode por na roda? heheheheh
[…] inclui-se a peça La Razón Blindada, apresentada no festival no dia anterior a esta conversa. Baseada na relação de presos polÃticos […]