O Púcaro Búlgaro
Fotos: Guga Melgar
Explicação desnecessária (CARVALHO, Campos de. 1964)
“Esta espantosa crÃtica já estava para ser entregue a seus afortunados editores da excelsa Revista Bacante quando uma comissão de búlgaros, beberes, aramaicos e outros levantinos, todos encapuzados, procurou certa noite o autor (as minúsculas são atestado de humildade) e ofereceu-lhe dez milhões de bolos de rolo (fina iguaria da erma região na qual reside o bem-aventurado autor) para que não o publicasse – pelo menos até o começo do século XXI, quando certamente o mundo já não terá mais sentidoâ€.
A partida (2010)
(três crÃticos de arte estão sentados em volta de uma mesa de vidro, numa sala pintada de branco, cujo chão é revestido por mimosa cerâmica verde. Jogam cartas. Uma bicicleta vermelha está encostada em uma das paredes. Digna de nota é a presença de uma TV escandalosamente grande, em algum canto do recinto, que nunca é ligada; os nativos a usam como espelho pra se ver de corpo inteiro):
CRISTHIANO (sentado nas costas de uma poltrona, abrindo e fechando o jornal freneticamente): Ainda bem que o racionamento do sol vem aÃ, segundo acabam de noticiar os jornais.
ASTIER (depois de levantar-se da cadeira, ter um espasmo interminável e ser aplaudido em cena aberta pelo público, diz, num só fôlego, com voz sapiencial): Não sou eu que ando um pouco fora de época. É a época.
JULIENE (olhando por um binóculos para as pessoas inexistentes que descreve): Para nossa expedição em busca da existência, ou não, da Bulgária, temos: Hilário, o narrador; o doutor Radamés Stepanovicinsky, bulgarólogo famoso e natural de Quixeramobim, no Ceará; Rosa, a criada gostosa; Pernacchio, que, de tantos anos morando ao lado da Torre de Pisa, ficou um pouco inclinado para a esquerda; Ivo que viu a uva, cuja famÃlia fez fortuna inventando o zero e cobrando direitos autorais; e um sujeito que diz que não existe.
ASTIER (olhando disfarçadamente para o que aparece sob a saia curta de Rosa, a criada gostosa): Estive conversando com esse professor Radamés sobre a existência ou não dos púcaros búlgaros. Disse-me que em búlgaros ainda poderia acreditar, mas em púcaros búlgaros não.
JULIENE (apontando para o mapa em tom professoral depois de vestir o sobretudo): Você, que é da direita festiva, deveria saber que o que se convencionou chamar a Bulgária é sobretudo um estado de espÃrito. Como Deus, por exemplo.
CRISTHIANO (girando a enorme estrutura de madeira que simboliza a passagem do tempo) : Merde! Descobri que estamos a 12 de outubro e não a 8 de dezembro.
ASTIER (de sobretudo e cabelos brancos, na banheira): Bobagem. Recife é um bairro onde se pode viver tranquilamente, desde que se seja louco. O que importa é que, segundo o professor Radamés, a descoberta da(s) Bulgária(s) é uma experiência que não tem nada a ver com a experiência.
JULIENE (servindo o jantar que os demais devoram com gestos animalescos): Lista de viagem: um canhão; uma porta de emergência (sobressalente); um sabonete; um tubo de comprimidos (bem comprimidos); um cocar de Ãndio; uma cabra bem fornida (com pouco uso).
Nota biográfica
Alguns escritores brasileiros continuam a ser um segredo. Campos de Carvalho (1916-1998) foi um deles. É um dos famosos escritores do não, como diria Vila-Matas, pois escreveu suas principais obras em pouco mais de dez anos e passou outros trinta calado. Seus livros até pouco tempo eram esgotadÃssimos; os fãs contrabandeavam cópias xerox para lê-lo.
O púcaro búlgaro foi publicado no pedregoso ano de 1964. Nessa época, era preciso tomar uma posição; ainda era preciso escrever um romance para descobrir o Brasil e a nossa identidade nacional; não parecia ser o momento de ir em busca da Bulgária. Este talvez tenha sido um dos motivos para Glauber Rocha ter escrito uma crÃtica na qual diz que A lua vem da Ãsia, segundo romance de Campos de Carvalho, é uma diarreia. A obra do autor de púcaro búlgaro talvez tenha sofrido tanto silêncio por não dialogar tão bem com nossas ânsias de brasilidade; por se aproximar do bicho estranho do surrealismo com um humor que desperta desesperos.
Monólogo diante de um cartaz no teatro Santa Isabel
– Um dia a fama; no outro, a lata de lixo. “Dos holofotes à reciclagem: a biografia de um cartaz pregado na paredeâ€. Concordo: a maior aspiração profissional de qualquer cartaz é ser adotado por algum colecionador, antes de virar um problema ambiental. “Nem todos os cartazes vingamâ€, dizia Machado de Assis – terrÃvel verdade. Após uma semana difÃcil, decidi acompanhar alguns novos e velhos amigos ao teatro Santa Isabel, durante o 16º Janeiro de Grandes Espetáculos. Encontrei você ao lado da bilheteria e já ouvi Astier reclamando “essa mulher no cartaz parece Luana Piovani, isso é propaganda enganosaâ€. Decidi comprar uma fatia de bolo para o rapaz e os outros que nos acompanhavam, para que pudéssemos conversar em paz e novos problemas diplomáticos fossem evitados. Pelo que você me informou, o espetáculo que eu veria fazia parte do projeto Romance-em-cena, dirigido por Aderbal Freire Filho. O nome do projeto, autoexplicativo, me deixou bastante curioso.
– O cenário despojado de púcaro búlgaro era legal. Os objetos soltos, a banheira, a mesinha, as miudezas, ajudavam a definir a geografia do texto, pela qual os personagens do romance trafegam: a imaginação desvairada que os imobiliza em debates e elocubrações absurdas. A peça e o livro continuam um dos mais antigos temas da literatura: a aventura. No caso, a não aventura, a não viagem, porque a busca pela Bulgária acontece toda dentro do apartamento de Hilário, o narrador.
– Sabe qual foi a primeira coisa que pensei, minutos depois que a peça começou? “Porra, esses caras são loucosâ€, porque o romance estava ali, na tora, sem vaselina, quase todo, circulando pelas falas dos atores, que trocavam constantemente de papéis. Numa peça na qual a literatura é tão afirmada e prestigiada, isso só serviu para realçar de igual modo o teatro. Um dos temas mais importantes de Campos é a loucura e eu via, ali, em movimento, um resumo engraçado e assustador dela: vários corpos e rostos, pelos quais ziguezagueava a mesma palavra cheia de tormento. Todo enlouquecimento tem muitos rostos; quando a gente coloca um bocado de máscaras uma em cima das outras, todas vazadas, carcomidas, cobertas de limo, os desejos colocando as lÃnguas para fora… Os pontos nos quais a vida dá uma guinada são sempre simples; para Hilário e os seus outros, a visão de um púcaro búlgaro em um museu nos EUA; para nós, um vislumbre, um encontro, um passo e Kaput, fudeu, mudou tudo.
– Hum. Outra coisa legal é descobrir como a palavra é só uma partitura. De maneira geral, os atores conseguiram, através do corpo, da voz, dos olhares, da respiração, da velocidade, traduzir bem o romance. Algumas cenas ficaram melhores no palco do que no livro. Outras, piores. Reclamei um pouco com Juliene e Astier que achei as atuações excessivas, pastelão demais (e o texto de Campos de Carvalho já é particularmente intenso); eles argumentaram que aquilo era necessário para a tradução da literatura na cena. Aqui e ali, havia uma repetição de cacoetes corporais e bordões de interpretação que pareciam desafinados, embora não comprometessem a qualidade do espetáculo.
– AÃ, se provava que a palavra também é imagem. Num espetáculo “textocêntricoâ€, como diriam meus crÃticos estimação, poucas vezes vi tanto! Transformar as doidices do romance em movimento e imagem foi uma experiência que me agradou. Fico pensando, aliás, como esse espetáculo provavelmente cresce quando encenado em outro lugar, com o público mais pertinho, os personagens pirando no meio da gente, num lugar…
– O Santa Isabel é uma boniteza – você me disse. – mas é Castro Alves demais para Campos de Carvalho.
– Concordo. Enfim, quem não tem mão… Caça com gato.
(Essa peça não recebeu cotação do crÃtico)
Veja também a crÃtica de Astier BasÃlio para O Púcaro Bulgaro.
kkk, ótimo!
Li o romance do Campos de Carvalho, mas, isolado culturalmente na “macondo” C.Lagoa, não assisti à peça que deve ser incrÃvel. Um abraço e sucesso. J.Fasuto Tololy médico-escritor.
Li o romance por indicação do Mario Prata; a peça voltará a cartaz em breve?Sorry pelo erro J.FAUSTO TOLOY médico-escritor “soi-disant”
[…] serem desbravadores de gabinete, apenas, facilitou o translado do Púcaro para o teatro, em uma divertida peça que rodou várias […]