Oceano

Críticas   |       |    5 de agosto de 2008    |    2 comentários

Respeitável leitor,

O primeiro contato que tive com as artes cênicas, logo nos primeiros anos de minha vida, foi através do circo e graças a meus pais. Não, não, minha gente, não sou filho de trapezistas e tampouco tive a emoção de ver meus pais se serrando ao meio ou arremessando facas um contra o outro. Acontece que sempre fui levado ao circo por adorar palhaços – que via inclusive na televisão, pouco antes do monopólio das loiras se estabelecer no promissor e milionário mercado dos programas infantis.

Algumas décadas depois, não é essa a mesma realidade da criançada que corria pelo Memorial da América Latina antes do espetáculo Oceano, segunda produção do Circo Roda Brasil, projeto itinerante dos Parpapatões e do Pia Fraus (o primeiro havia sido Stapafúrdyo, apresentado há algum tempo no mesmo Memorial). Não precisava muito para deduzir que aquela era a primeira vez de muitos pequenos debaixo de uma lona, afinal circo não é exatamente um elemento obrigatório no roteiro da classe média paulistana – ao menos não quando o picadeiro não vem do Canadá com ingressos com preços de três dígitos.

As referências ao circo do Sol são inevitáveis: é sobre ele que ao menos duas conversas alheias ouvidas (ô mania feia!) antes do espetáculo falavam, é ele que alguns figurinos e maquiagens lembravam, é em comparação a ele que o cartaz de divulgação no Espaço Parlapatões dizia que era “circo nacional com qualidade internacional” e a ele que o parlapatão Raul Barreto se referia quando dizia que “o preço de um ingresso lá paga uma fileira inteira aqui”, reaproveitando, ainda de forma pertinente, a mesma piada que era ouvida em Stapafúrdyo. Ao mesmo tempo em que não dá pra tapar o sol com a peneira ignorando a influência da franquia circense (tipo McDonald’s), fica um questionamento do quanto, afinal, deve ser incorporado, e o quanto deve ser distanciado do formato de Montréal (que também não arreda pé de Las Vegas e, neste instante, em dezenas de outras cidades no mundo).

Não vou entrar na roubada de tentar responder essa pergunta. Ao contrário disso, prefiro apenas mencionar uma das características que consagraram a empresa canadense lá no início dos anos 80 e que também se aplica ao Roda Brasil, tanto em Oceano como no espetáculo anterior: o foco das atenções na capacidade humana de encantar, impressionar e divertir. Mais importante do que a exploração de animais (pra possível decepção da criança que, na fila, vi sendo ludibriada pelo pai desinformado que a alertava que lá dentro seriam vistos bichos “de verdade”) ou ainda de truques “escondidos” (que, curiosamente, é o foco da maioria dos espetáculos de novo circo franceses apresentados nos últimos anos nos palcos italianos do SESC) para impressionar o público, aqui a proposta é encantar com aquilo que o ser humano efetivamente é capaz de fazer, seja com o domínio de seu próprio corpo (por mais fantástico que possa parecer), seja com o poder de fazer rir (o que também é fantástico, agora pelo outro sentido da palavra).

Além disso, outra característica do Roda Brasil é a incorporação da linguagem urbana. Em Stapafúrdyo, havia street dance. Agora, em menor quantidade (infelizmente) é a vez de patinadores que voam sobre o cenário, mesclando-se aos demais artistas. Com a temática do “oceano”, tudo se amarra, de alguma forma, à história do garoto que desce pelo ralo da banheira atrás de seu patinho de borracha, e acaba no fundo do mar – amarração conceitual que não se tornava clara (tampouco necessária, olhem só!) em Stapafúrdyo, com seus números desconexos mas, ainda sim, hipnotizantes. Apesar dessa temática mais definida que dá conta de incorporar inclusive os gigantescos bonecos de ar do Pia Fraus (que no espetáculo anterior eram o que menos chamava atenção e agora fazem todo o sentido), o que mais faz falta é uma maior construção de personagens e de situações, uma vez que o espetáculo se propõe a contar uma historinha – ainda que de forma não-dramática (grazadeus).

Stapafúrdyo, apesar de não ser pioneiro nesta proposta, declarava uma ruptura com o formato tradicional de circo, mostrando ao público que era possível misturar linguagens contemporâneas e até mesmo – por quê não? – fazer rir da própria tradição circense (o número dos quatro parlapatões parodiando os shows de águas dançantes era simplesmente impagável). Oceano, com bem menos palhaços e palhaçadas, uma pegada mais infantil (lembrando que em geral é mais bacana quando a obra tenta falar com todos os públicos, esvaziando de sentido classificações como “infantil” ou “adulto”) e uma proposta conceitual mais bem-resolvida, mostra não só que é possível a continuidade do projeto de rodar o Brasil com um circo de qualidade sem afundar na mesmice do próprio repertório, como que também é possível um resgate da tradição circense para que ela seja visível ao grande público, sem que sejam necessárias as comparações com o que vem de fora. O desafio agora é, a partir da linguagem proposta e do espaço conquistado, apostar numa radicalização cada vez maior sem se render a fórmulas de sucesso estrangeiras. Se isso tudo puder ter ingressos abaixo de trinta reais, não vejo motivo algum para que o Roda Brasil não resgate a popularidade do circo.

Dezenas de pipocas arremessadas na cara do molequinho da cadeira de trás pelo palhaço politicamente incorreto

'2 comentários para “Oceano”'
  1. […] Oceano, da Pia Fraus em parceria com os Parlapatões […]

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