O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado

Críticas   |       |    24 de setembro de 2007    |    4 comentários

Manual da ode a São Paulo

Leia também a crítica de Juliene Codognotto para este espetáculo.

Fotos: Zeca Caldeira


Acho cada vez mais difícil fazer odes a qualquer coisa sem cair numa breguice chata. Odes, já ensinou o Mário de Andrade, são boas mesmo quando falam mal, quando criticam, enfim, quando não são odes. Essa deve ter sido a premissa da Cia. São Jorge de Variedades ao começar a pesquisa de seu último trabalho: O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado.

O primeiro é o guerreiro que monta o cavalo e luta com o dragão, Ogum para alguns, é personagem de um dos episódios do Mundo da Lua de Lucas Silva e Silva e está no nome e no sangue da Companhia. São Jorge está lá para apresentar o segundo, o fidalgo mais conhecido da literatura mundial, que enxerga o mundo sem o feitiço cotidiano: Dom Quixote. Ele veio parar na praça da República, pra mostrar tudo o que terá de enfrentar por sua honra de cavaleiro e seu amor por Dulcinéia.

Olha, eu já tinha pensado na Dulcinéia de tudo quanto era jeito: feia, bonita, alta, magra, desdentada, esquelética, homem, sapatona, prostituta, inconsciente coletivo, mas nunca, nem nos meus mais profundos delírios de ácido eu diria que Dulcinéia é São Paulo. Por isso existe o trabalho desse grupo: ressignificar Dulcinéia e São Paulo, como uma coisa só.

Este Dom Quixote passa toda sua trajetória procurando por uma Dulcinéia que vai se revelando cheia de moradores de rua, motoboys, camelôs, cheiradores de cola, madames com poodles e, óbvio, ele enfrentará os famosos moinhos de vento. Aqui, Dulcinéia é poluída, problemática, mas nem por isso faz perder a paixão que todo paulistano tem em organizar a vida no amor e ódio diário por essa cidade doida. Aqui está a Ode. Não há como falar de São Paulo com mais um seriado da Globo. Eu não vou assistir e quem for vai achar chato ou pelo menos repetitivo. São Paulo é revelada das entranhas quando um grupo resolve apresentar seu espetáculo na Praça da República, uma homenagem torta, um personagem torto, como nós, que procuramos uma beleza que cada vez fica mais difícil de encontrar.

Não tenho a menor dúvida de que esta peça será resenhada diversas vezes, assim como já foi noticiada em toda imprensa paulistana, por isso vou me ater a uma única história que aconteceu no dia em que assisti. Sentada ao meu lado, estava uma moradora de rua que não parava de falar ao longo de todo o espetáculo. Em dado momento, ela saiu e foi buscar um “trago”. Quixote, já nos seus delírios finais clama por Dulcinéia, e eis que ela é personificada por essa moradora, que ressurge, entra em cena sem ser chamada e afirma, cara a cara com o fidalgo: “Eu sou Dulcinéia!”. Quixote desconcertado não quer enxergar a verdade, mas ela insiste “Eu tomei um pouco de Sol, mas sou eu”. E a partir daí ela fará dupla com Sancho Pança, seguirá na procissão e dará a impressão de que tinha sido contratada. Claro que não, aquilo é simplesmente um dos fatos que faz deste dia de apresentação, como todos os outros, plenamente único.

Afirmando o movimento dos grupos, que é o legado mais importante do teatro dessa cidade, os integrantes da Cia São Jorge de Variedades produzem um espetáculo profundamente macro e micro-político, sem serem panfletários e chatos. Uma experiência emocionante (no sentido menos piegas da palavra), daquelas pra se guardar no canto mais gostoso da memória de todos aqueles que acordam, andam, vivem, choram e fazem odes diárias a São Paulo.

300 pessoas reunidas, pelo menos, assistindo na praça. E cabia muito mais.

 

 

'4 comentários para “O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado”'
  1. rodrigo disse:

    Há pouco tempo tive que fazer um trabalho de canções sobre a cidade de São Paulo e fiquei pasmo quando percebi que não havia uma só canção que exaltasse suas belezas sem lembrar tb suas terríveis desigualdades e tristezas.Salvador tem! Recife, BH, tem tb! Rio de Janeiro, muitas.(Sampa é uma linda canção mas que mostra tb a face deselegante,cinza e desumana da cidade)!São Paulo não inspira mesmo elogios fantasiosos e comentários unilaterais.

    Acompanho o trabalho da São Jorge desde a primeira peça na EAD e Dom Quixote é uma das minhas preferidas.Sai amando Dulcinéia um pouco mais, com vontade de levar flores pra ela, com vontade de gostar dela de forma mais madura, afinal foi escolhida e desposada por mim ha 15 anos.
    O Paulistano Mario era do dia 9 de outubro, eu sou do dia 8 mas ao contrário dele gosto das odes e se tivesse seu talento, escreveria uma bem grande para a São Jorge e seu Quixote.
    Um beijo pra os Bacantes daí e para os de lá!

  2. Fabrício Muriana disse:

    Oi Rodrigo
    Falar que eu tenho uma identificação especial com o jeito quase mítico do Mário de Andrade é cair no clichês. Mas não sabia que ele também era de outubro. Eu sou de 16.
    E sim, São Paulo parece que deixa brega todo amante crônico. Que bom. Assim ficamos meio Quixotes. Brigadão pelo comentá e apareça.
    Abraço.

  3. Shailen disse:

    Eu me apresentei qdo o grupo Caldeirão foi convidado, e amei o trabalho feito pelos atores da São Jorge.
    No dia da nossa apresentação também houve intensa participação da platéia e agora estou simplesmente apaixonada pelo teatro de rua.

  4. […] O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, da Cia São Jorge de Variedades […]

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