Senhora dos Afogados

Críticas   |       |    11 de novembro de 2008    |    8 comentários

Minha primeira noite com Antunes…

Foto: Divulgação

Alguns nascem, crescem, entram no mundo do teatro, encenam O Rapto das Cebolinhas, lêem uns livros importantes (e outros nem tanto assim), assistem cinema argentino, plantam uma árvore, montam Nelson Rodrigues na escola, fazem longos discursos sobre o pós-dramático, criam mitos (desmitificam outros), e rejeitam, por tudo que há de mais sagrado no mundo, o teatrão. Nem precisa me acusar de ter feito tudo isso, esperando uma resposta grossa e irônica, visto que não vou negar o passado, apesar que meu figurino de Camaleão Alface era horrível e quente. Parece mais cult (mesmo sendo menos rentável) falar na explosão do palco italiano, pesquisa visceral dos corpos, as novas mídias no teatro contemporâneo, deixar o público sem entender os princípios de descontinuidade, e as montagens “tradicionais”, aos moldes do século XX, ganham um rótulo bem grande de “ultrapassadas” e, por que não, “burguesas”.

Em minha última passagem por São Paulo, contrariando todas as indicações possíveis, fui assistir pela primeira vez o bom velhinho Antunes Filho e o seu CPT em Senhora dos Afogados. Lá ia o crítico dentro do metrô pensando em como seria o tal teatrão do cara, classificado por alguns como sem inovação, preso ao texto e às técnicas de interpretação “ultrapassadas” (com direito a laboratórios e ressonância vocal). Todas as expectativas pendiam para um lado obscuro. Será que iria ver de novo aquelas peças onde as velhinhas da platéia e família dos atores aplaudem de pé e os devoradores de Lehmann são obrigados a dividir uma pizza com as namoradas que saem do teatro comentando como era bonito o vestido da mocinha? Os três sinais antes da peça são acompanhados por um sinal da cruz pedindo a Deus para não deixar ver mais uma peça utilizando cadeiras (que já estavam no palco) iguais a milhares já vistas.

A música tocada no piano, atrizes correndo no palco, uma luz obscura e um coro acompanhando um velório nos primeiros cinco minutos dão um nó na minha cabeça: é tudo tão comum e ao mesmo tempo instável.

Como tantos outros, também acho esse texto de Nelson um dos mais líricos, com as rubricas mais subjetivas e poéticas usadas em uma tragédia brasileira. Porém, o ambiente que se cria, com vozes distorcidas, vestidas em roupas pretas e pesadas, em movimentações artificiais, num entra e sai de atores, não me lembra em nada o mar e o calor responsável por tantos pecados ao sul do Equador. Parece muito mais uma Rússia gelada e extremista, onde as paixões avassaladoras não terminam ao som de Cartola.

E dá-lhe atores andando em círculos, mexendo as mãos pra lá e pra cá. Mão de ator me incomoda muito. Já fiz terríveis planos de amarrar os braços dos atores impedindo-os de fazer qualquer movimento com as mãos, ou até mesmo cortar fora o quirodáctilo pra não ter problemas com os excessos. Antunes consegue que seus atores tenham quase a medida das mãos de Grace Passo, que assumindo todos os movimentos, permite marcas que estabelecem o distanciamento do naturalismo, jogando as energias mais densas das cenas nesses vetores, sem cair em uma muleta do ator que se mexe sem parar porque não sabe onde enfiar as mãos (tipo primeiro almoço na casa dos sogros). Parece uma forma de reforçar o texto de Nelson, que se refere às mãos como o germe do pecado. Pelos movimentos das mãos percebe-se quanto a preparação de alguns atores permite realizar com destreza as partituras revelando um expressionismo que sai das mãos e se espalha por todo o corpo, e o quanto em outros (principalmente os intérpretes dos filhos da família) o esforço em realizar as marcações leva às vezes a uma leitura vazia [seria falta de concentração, “fé cênica” ou maturidade profissional?].

Pra minha surpresa as cadeiras estão ali apenas para serem cadeiras. A falta de inovações cenográficas (ou de qualquer outro elemento cênico, como iluminação e sonoplastia, tudo muito mínimo, sóbrio e certinho) mostra que o trabalho de carpintaria de ator é o mais importante na encenação. Ao imaginar como são os ensaios da companhia sinto uma pena profunda dos atores, sofrendo para criar e executar exaustivamente as cenas milimetricamente perfeitas, até que as mesmas sejam feitas como se fossem a coisa mais natural do universo (uma naturalidade falsa que a todo momento nos lembra que tudo visto é representação). Até mesmo o cheiro de organicidade-dionísica-evoé das três prostitutas em suas ladainhas vingativas, tem um rigor técnico distanciado de qualquer resquício festivo-descompromissado.

E ver um trabalho desses é ruim? Se fosse apenas um monte de atores parecendo robozinhos cuspindo textos seria horrível. Mas pra minha sorte não é. Os recursos utilizados para a encenação aproximam a poética rodrigueana do público sem artifícios e clichês, conseguindo ao mesmo tempo chocar e emocionar, não poupando suspiros e risos. É quase o que o Maurício disse sobre o que o atraiu à montagem da Mãe Coragem e seus filhos do Armazém conseguindo “dar sua própria cara para um texto sem necessariamente descaracterizá-lo, fazendo aquilo que muita gente não consegue por achar que o texto sempre será maior do que sua encenação, quando, na prática, isso só deixa qualquer texto datado e velho.”

No fim, não tive o prazer de participar de uma tradicional palavrinha do Antunes com a platéia pra responder se tinha sido bom pra mim o desvirginamento. Que azar! Os mitos são assim mesmo, nem ligam no outro dia.

40 mãos doidas para me levar pro mundo do pecado

Confira também a crítica de Valmir Jr. para essa montagem.

'8 comentários para “Senhora dos Afogados”'
  1. Caro Emilliano,

    Gostei muito da tua crítica. Saiba que, durante os ensaios, Lehmann e o teatro pós-dramático foi um dos assuntos que estudamos a fundo. E você percebeu isso não por ter lido em algum lugar, em alguma outra crítica, mas porque, de alguma forma, me parece que intuitivamente, você leu isso do próprio espetáculo! O que é louvável em um crítico. Isso mostra que você, ao criticar, dá prioridade ao que sente, e ao que vê, como se sentisse e visse pela primeira vez. Duvidando das idéias pré-concebidas, enquanto que a má-crítica vê a obra não para entendê-la em seus caminhos tão próprios, mas para encontrar nela argumentos para idéias pré-concebidas. Por essa razão, gostei tanto da tua crítica e por essa razão vim aqui te dizer isso. Porque estamos, neste mundo de consumo, de mercado, de viva vendida a preço de banana, de banalidades alçadas tão fácil e futilmente à categoria de algo significativo-grandioso-importante, que estamos profundamente sedentos de críticas e obras do coração, de análises vivas da vida e da arte.

    P.S.: Você não imagina que prazer! mas que imenso prazer! é construir a partitura de movimentos corporais e vocais das personagens que vem à vida através de nossos corpos e mentes! Um abraço forte! Continue vivo! Precisamos de gente viva!

  2. Valmir disse:

    Autorizo a Bacante a retirar a minha crítica à mesma peça. Pois essa aqui, do Emilianio, matou a pau. Fiquei pequenino… hehehe…

  3. Emiliano,

    Queria lhe dizer algo(s) que me incomodou bastante.

    Resumidamente, o tom que você usa rebaixa toda a crítica ao tradicional a um movimento massificado e, pior, a-histórico, quando trata-se de justamente o contrário.
    Acredito que a leitura que você teve dessa peça se apoiou numa caricaturização de todo um pensamento crítico/teatral/teórico que busca entender a fundo quais as funções históricas e sociais do teatro e que não é, portanto, um modismo pouco aprofundado (e eu nem estou falando do Lehmann, que todos leêm, estudam e o caralho, mas que poucos olham historicamente), até porque a idéia de que essa contestação seja discurso comum entre artistas é um equívoco, pois todo o discurso dominante pensa exatamente que o teatro é “alta-cultura” e tem de ser, cada vez mais “institucionalizado” como o teatro do Grão Duque Antunes Filho.
    Mas, para expor teu olhar, você usa de sua própria trajetória individual como alvo, o que eu, sinceramente, achei muito pior, pois assim você foge do interlocutor real de sua crítica e cria a ilusão de que você apenas chama de ingênuo a você mesmo.

    Ademais, acho providencial a um exercício crítico fugir às naturalizações postas, e entender um processo, seja histórico, seja artístico, para, a partir daí criar um discurso (experimental, ou não) a partir da obra alheia.
    Todavia, o postulado de suas constatações foge a um discurso acerca da obra alheia, para sublevar sua impressão individual, pontual e momentânea da obra – até aí, acho contestável, mas tudo bem. Entretando, voltando ao início, você une à esse olhar toda uma taxação implícita (e preconceituosa, diga-se de passagem, vide a parte das namoradas burras que comentam o vestido… etc) sobre um outro olhar contestário, ao invés de criar um diálogo real entre estes dois tipos de pensamento.

    (*como ponto positivo, poderia achar que a crítica sarcástica que você faz a esse pensamento de ruptura é justamente por ele também ter tornado-se homogêneo e padronizado: incorporado. Mas, Emiliano, se for esse o caso, o demérito à toda visão de ruptura, sem distinção, não resolve o problema, pois não faz a separação entre discurso “incorporado” e discurso “real”, pelo contrário, seria algo como: se esse discurso foi, por um lado, massificado então vale seu antípoda – acredito que isso é um tanto quanto esquizofrênico posto sem aprofundamento maior, não acha?)

    Bom, é isso…
    desculpa mesmo se meu tom foi meio agressivo, não é intenção. É apenas uma coisa que me deixou um pouco bravo.. e eu acho mais sincero expor da maneira como me atingiu..

  4. Juli disse:

    Oi, Paulo… o comentário não me parece agressivo, só chato mesmo. rssssssss Quantos “todavias” e “ademais”!!! hahahahaha

    “Todavia”, é muito legal instigar essa discussão. De fato, pra mim, o que há de mais bacana nessa crítica é a pessoalidade, o retrato do momento, o assumir-se como UM observador em UMA situação muito específica, quase particular. Esse, provavelmente, também é o valor que o Leandro vê neste “depoimento”.

    “Ademais”, acho ok desprezar o que uma “crítica massificada” diga e perceber a obra por si. Faltou, talvez, falar mais dessa tal massificação. Acho que jogar tudo no mesmo balaio e chamar de “cult” pode ter sido agressivo da parte do Emilliano, no sentido de aparentemente desconsiderar o histórico dessa vontade de “explodir o palco italiano” e etc, mas isso deve ser porque era uma brincadeira para dizer que essa maneira historicizada é uma possibilidade de ver/ sentir a obra, mas não a única.

    Enfim… fiquei chata tb. É mau do assunto? rsss

    Beijos,
    Juli =)

  5. Ôh Paulo, não precisa de ficar agressivo e me levar tão a sério! Eu sou um pobre rapaz latino americado ingênuo mesmo! Rir de nós mesmos é fundamental pra compreensão de todo o processo criativo construído ao longo de nossa existência (seja sério, experimental, confuso ou institucionalizado). Nem por isso estou me reduzindo, apenas tentando compreender o que me levou a tomar determinadas atitudes. Ok, tá tudo tão individualista né? Eu, mim, meu. Mas essa foi a forma que encontrei de analisar esse espetáculo, e . São as minhas reflexões (nem sempre momentâneas) de uma peça que quando ouviam eu dizer: “vou assistir o senhora do Antunes” todo o mundo torcia o nariz.
    Acho que escrevi essa crítica um pouco pra instigar uma discussão. Pôxa, eu tô quase falando bem do Grão Duque do SESC.
    Quanto a certos tiques preconceituosos, são só brincadeiras (que lógico tem um quê de onde estou, quem eu sou e pra onde vou). Todo mundo tem um certo preconceito em relação a diversas coisas (prefiro não me estender pq senão vira tese). E se vc soubesse o que rolou nos emails de fechamento da edição, principalmente quanto ao suposto machismo e as namoradas dos devoradores de Lehmann (lembrando que curto muito o livrinho dele), ia se divertir muito (que digam as feministas bacantianas). Mas lembre-se parte de tudo é piada, e piada politicamente correta só agrada comunistas (outra piada preconceituosa nada engraçada). Na verdade eu sou um doce e não leio mais Lehmann pra ver se tenho um relacionamente estável de uma vez por todas.
    Sim, foi extremamente superficial de minha parte jogar várias coisas no mesmo balaio e desprezar o movimento histórico-cultural-econômico-social. Contudo, sabe aquele saco cheio de ver as pessoas jogando tudo o que se faz de teatro no mesmo barco? Rotular e cricrizar tudo? Por que não brincar disso um pouco? Vamos deixar também um pouco de coisas no ar, ao invés de aprofundar. Se tivesse aprofundado não teríamos essa discussão!
    Acredito que pra isso ficar melhor, só a Bailarina de Vermelho e suas teorias Avant Garde. Vou tentar ligar pra ela pra ver se consigo entender algumas coisas.

    Ôh Leandro,
    Que bom que gostou da crítica!
    Acho difícil desvincular a crítica ao que senti durante o espetáculo (e o que isso me remoeu até agora) .

    Ah Valmir,
    Pára com isso! uma das razões de eu ir ver essa peça foi a sua crítica, e todas as discussões que ela gerou.

    Ah Juli,
    Sim, o que eu quis foi fazer “uma brincadeira para dizer que essa maneira historicizada é uma possibilidade de ver/ sentir a obra, mas não a única.” (se bem que agora que vc escreveu que a ficha caiu!)
    Todavia, vc é uma feminista! E eu gosto d vc mesmo assim!

    Bjos!

    Emilliano Freitas

  6. eu gosto de ´teatrão´. então eu fui, esperando ser arrebatada: um dos melhores textos do nelson com direção do antunes (eu amo nelson).

    e sabe o que senti? distanciamento. a montagem simplesmente não me tocou. as duas atrizes protagonistas me diziam o tempo todo: ´estou representando. olha como sou boa. faço o que quero com minha voz, minha expressão. olha essa…´.

    e eu não gosto disso…

    conversando com minha amiga atriz depois da peça, que já trabalhou alguns anos com antunes, ela disse que é assim mesmo (ou algo do tipo): ele não preza pela emoção, e sim pela técnica.

    mas daí teve só uma pulga que ficou atrás da minha orelha: porque então o ator que faz o pai, lee thalor, foi o único que me emocionou e arrebatou a peça toda?

    minha amiga atriz respondeu (ou algo do tipo): ´ah, mas ele é ótimo mesmo!´.

    hahahaha

    ´ou seja, cerveja.´

  7. Pois é Maria Clara,
    Acho que o lance nem é gostar de teatrão, teatrinho ou teatróide. Como diria o Abílio Tavares, o importante é que seja um bom teatro (e lá vai todo o relativismo que a palavra bom nos traz).
    Também senti que a todo momento os atores demostravam suas estrepolias técnico-cênicas. O RRRR carregado da atriz que faz a D. Eduarda e a possessão demoníaca da Moema com um cheiro técnico-artificial quase me irritaram. Mas isso no conjunto me agradou. Engraçado que quando uma montagem tem uma rigidez técnica eu não perco tempo com coisas que me incomodam e viajo na montagem.
    Sobre o distanciamento, li uma crítica que o cara chega a viajar sobre um suporto distanciamento brechitiano nessa montagem do Antunes (não sei se chega a tanto).
    Mas é uma forma de se fazer teatro, o que pode ser péssimo quando vira apenas virtuosismo, muito mais comum no circo.
    Daí quando vemos o Lee em cena, fico pensando no que o Sérgio Sálvia escreveu, dizendo que é o único à altura do diretor, conseguindo criar a partir do proposto pelo bom velhinho. Mas por enquanto acho que só vou pensar do que divagar sobre isso.

    É assim né, melhor dizer amor acabou a cerveja, do que chorar cerveja acabou o amor!

  8. É justamente para que as emoções toquem o público que o Antunes preza tanto pela técnica. O Lee causou permanente emoção na Maria Clara porque ele tem grande domínio técnico sobre seu corpo e sua voz.

    Um ex-professor meu, e grande amigo, estudioso do teatro paulistano e de Bertolt Brecht, Alexandre Mate, confirma essa tua hipótese, Emilliano. Ele diz que a obra do Antunes é, em muitos aspectos, um exemplo de teatro épico.

    O Sérigo Sálvia Coelho não é um exemplo de boa crítica de teatro, infelizmente, na minha humilde opinião. Já li muita besteira escrita por ele, e críticas elogiosas, por exemplo, a péssimos espetáculos. Mas ele dá algumas dentro, claro. Não discordo disso. Em relação ao CPT, entretanto, ele parece ter sempre um ranço no que escreve. Ranço de ex-ator rompido e ressentido. O ressentimento é uma merda. Nietzsche tem razão.

    O crítico e o artista não podem estar a reboque dos seus valores morais quando escreve, aquele, e cria, este. Eles precisam ter independência das suas próprias vontades para bem criticar e criar.

O que você acha?

A Bacante é Creative Commons. Alguns direitos reservados. Movida a Wordpress.