A Dona da História
Uma montagem doce e redonda, tipo brigadeiro
Quando li o nome da peça A Dona da História na programação do 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos, achei que não me era estranho e, pior, a impressão não era boa, não. AÃ, perguntando pro Google que-tudo-sabe, descobri de onde vinha meu preconceito:
Quase não fui. Ainda mais depois de saber que a peça estava em cartaz no teatro do Sesc Santo Amaro do Recife, o que significava andar de novo naquelas ruas em que todo mundo me dizia: “Você vai andar aÃ? É perigoso!” ou “Você vai pra lá de ônibus sozinha? É perigoso!” ou “Se for por aÃ, vai rápido… que é perigoso” ou qualquer outra frase que terminasse com “é perigoso”. Mas fui, principalmente pela possibilidade de ver uma peça de Petrolina.
Foto de Wellington Dantas
No teatro, surpresa. O mesmo espaço em que eu tinha visto outra peça dias atrás e que parecia um palco italiano imutável por vocação e projeto, tornou-se uma arena e ficamos todos do público bem mais próximos da encenação, que, aliás, já tinha começado a se mostrar, com duas atrizes bastante parecidas, vestidas com roupas idênticas, cantarolando uma canção doce em que as duas se complementavam.
Salto no tempo
As duas atrizes bastante parecidas estão novamente no palco, mas agora em outro andar do mesmo Sesc e para receber o Prêmio APACEPE 2010 de Melhor Espetáculo (Juri Popular), categoria que é decidida por votação popular em cédulas distribuÃdas ao final dos espetáculos.
Descalça, Cátia Cardoso começa um discurso Ãmpar em meio aos sorrisos blasés comuns em prêmios. A primeira frase já mostra o tom: “Eu acho que quem nos escolheu pra esse prêmio não está aqui hojeâ€. Não, não estava. Quem as escolheu estava, isso sim, presente numa obra que celebrava verdadeiramente o encontro teatral, que considerava a presença do público. Quem as escolheu recebeu flores de cetim na entrada do espetáculo, foi chamado a participar do encontro diversas vezes ao longo da peça e foi até mesmo convidado a ser ator/ atriz em uma cena especÃfica em que os papéis se invertem. Quem as escolheu foi despertado para a noção de que aplausos são ativos, não são gestos reproduzidos “porque-sim” quando alguém apaga as luzes do palco. Quem as escolheu foi justamente quem tinha sido escolhido por elas como foco do trabalho.
Extremamente conscientes de toda a politicagem envolvida nas estruturas festivaleiras, mesmo assim elas exaltam a conquista que é estar ali; Cátia – que concorreu também ao prêmio de melhor atriz, disputando com uma das produtoras do festival – conta brevemente sobre a dificuldade que é, ainda hoje, migrar do sertão para a Rua Aurora (referência da chegada ao litoral e à capital do Estado), uma trajetória Severina que pra quem está em São Paulo como eu, é muito difÃcil imaginar se ninguém testemunhar claramente ao microfone.
Por um lado, a habilidade de duas atrizes que foram formadas na experiência prática e não na academia me faz questionar, novamente, qual formação pode ser melhor e mais intensa que o contato com o palco e o público. Claro que uma coisa não impede a outra, ou seja, o estudo e o desenvolvimento acadêmicos não impedem a proximidade com quem assiste; nem a opção por formar-se fora da universidade impede um bom desenvolvimento técnico e teórico. Nesse caso, as atrizes contemplam as duas coisas: não ficam “devendo†nada em técnica e, ao mesmo tempo, conseguem ser próximas do público de uma maneira que poucas vezes se vê em montagens super-ultra-profissionais com pós-graduação na Europa. E isso não é uma coincidência, isso é resultado de uma peça construÃda em contato direto com o público, com ensaios abertos, apresentações gratuitas em lugares públicos e diálogos efetivos que de fato alteraram os rumos da montagem.
Por outro lado, a consciência polÃtica revelada nas práticas do processo criativo e na postura diante da premiação me faz esperar nos próximos trabalhos que questões mais contundentes e urgentes sejam abordadas. Explico: o texto de João Falcão traz como ponto forte uma mensagem de que podemos escolher os rumos das nossas vidas e ser ativos diante das estruturas que nos oprimem; no entanto, a apropriação da montagem poderia ter remetido essas escolhas, desejos e sonhos a algo mais do que apenas uma história de amor bonita. Talvez o que me faz falta é que a obra possa espelhar mais a prática já politizada dos artistas.
Salto de volta no tempo
Rápidas, sinceras e cheias de empatia com o público, as atrizes que representam a união de dois coletivos teatrais de Petrolina, envolvem as pessoas na história de tal maneira que a idéia que mais vale a pena no texto, que é mostrar que cada uma das nossas escolhas é que define o nosso caminho (em vez de Deus, do acaso ou do GPS), fica muito próxima e chega com naturalidade e leveza ao público. Claro que é estranho eu querer falar isso em nome de todo o público porque não conheço, obviamente, as impressões de todos. No entanto, neste caso, era muito clara a naturalidade das interações – mesmo quando se tratava de um rapaz ser levado a “interpretar” uma cadela que ia buscar um brinquedo. Além, é claro, dos risos constantes – mas isso, é verdade, nem diz muito, a ver o caso da palavra cu, na crÃtica de Encruzilhada Hamlet.
Foto de Wellington Dantas
A montagem tem, então, dois pontos de apoio: o contato verdadeiro com o público e um texto simples e dinâmico, embora com alguns problemas sérios. Isso porque o texto de João Falcão é revelador, mas ao mesmo tempo, é repleto de preconceitos e obviedades. Cabe aqui descrever uma cena que exemplifica isso com clareza. Num dado momento, entre as muitas escolhas possÃveis para seu futuro, a mocinha se depara com a possibilidade de ser atriz. Nesse ponto, estão presentes nos diálogos quase todos os clichês relacionados ao teatro que você pode imaginar. A menção aos amigos que fazem teatro como um “grupo de gente estranha”? Tem. A idéia pomposa de um artista que é celebridade e não artista de fato envolvido com alguma função social? Tem. A idéia anacrônica de “nome artÃstico”? Tem. A confusão entre arte e fama? Tem. A idéia do experimental como qualquer maluquice? Tem. A imagem da Marieta Severo projetada ao fundo? Ok, isso não tem. Enfim, apesar de todo esse contexto, a cena surpreende ao colocar a peça dentro da peça de uma maneira muito especial, atingindo o que, para mim, foi o auge da apresentação. Quando a mocinha chega ao teatro acompanhada da amiga, as duas descobrem que elas é que estão em cena e os atores são a platéia. O jogo se inverte e por alguns minutos a platéia é observada pelas atrizes como se estivesse interpretando uma platéia. A história só segue quando o público faz seu “papel de público” e bate palmas, o que, inclusive, não significa o final da peça, apenas o final da peça dentro da peça. Com essa cena e estes minutos de contato visual silencioso entre atrizes e público – com papéis pretensamente invertidos – João Falcão e as atrizes conseguem falar muito mais sobre o encontro teatral do que todos os diálogos anteriores sobre o tema.
Cotação: PP
Breve explicação sobre as cotações do 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos:
Para dialogar com o pomposo nome do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, resolvi cotar os “grandes espetáculos” em cartaz no Recife como PP, P, M e G. Mas, atenção! Decidi inverter a cotação! Isso porque eu sou do time dos que gostam mais daquela coisa de teatro pequeno, com público ativo e pertinho dos atores, do que daquelas peçonas que a gente precisa de binóculos pra ver. Sim, isso é bem “gosto pessoal†e não significa que toda peça pequena no mundo seja fantástica, nem que toda peçona produzida na história do teatro seja um lixo. Assim, de acordo com meu critério, a grandeza nessas crÃticas ficará medida ao contrário, no sentido de “os menores serão os maiores”. Tipo PP vale mais que P, que vale mais que M que vale mais que G, deu pra entender?
***
Outros textos sobre o 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos na Bacante:
Meu, que não estava no festival, mas estava no contexto da cobertura
O que você acha?