Encruzilhada Hamlet

Críticas   |       |    17 de fevereiro de 2010    |    0 comentários

Mais um Hamlet… dessa vez com muito mais crítica do que o habitual


Foto de Val Lima

Como é de praxe, passei metade da peça puta com os dois personagens de Encruzilhada Hamlet. Isso porque quase todo personagem assim meio próximo da lógica do bufão costuma me incomodar no primeiro contato. Nesse caso específico, a minha birra era porque os espíritos revividos do príncipe Hamlet e de seu coveiro, que se encontravam na tal encruzilhada ainda dentro da cova compartilhada, teimavam em fazer piadas fáceis, entre elas, pelo menos três investindo na graça da palavra cu. “Porra!”, penso. “Por que é que dizer cu é tão engraçado?”. Dizer e mostrar, aliás, já que, depois de uns 400 anos enterrados, as roupas dos dois já tinham sido comidas e os atores aproveitavam a nudez para, com alguns movimentos específicos, provocar mais risos fáceis da platéia que, correspondendo à expectativa, se esbaldava. “Cu”. “Hahaha”. “Cu”. “Hahaha”. “Cu” + movimento do corpo do ator de costas mostrando o cu. “Hahaha”.

Passada a minha revolta com a assustadora risibilidade do cu, os diálogos entre os dois, repletos de gestuais exagerados, caretas e vozes estranhas, tomam um rumo que começa a fazer mais sentido. E se mostra então um enfoque da obra de Shakespeare que ilumina um conflito essencial que me pareceu muito mais caro ao nosso tempo do que o tal assassinato do rei da Dinamarca ou a loucura de seu príncipe: o conflito de classes.

Com ele, vêm à cena as diferenças entre os modos de pensar e ver o mundo do Coveiro – homem do povo, símbolo do conhecimento e da experiência adquiridos na vida em si, do olhar mais pé-no-chão inclusive para a própria morte – e de Hamlet – príncipe perdido e meio iludido com excesso de palavras e de intelecto que mais atrapalham do que ajudam em situações como a de estar preso à própria cova e estar consciente disso. Entre inúmeras outras situações, claro. Um símbolo claro e concreto de uma tradição morta-viva. E, nesse ponto, ainda que várias falas fiquem difíceis de compreender, a abordagem é muito mais interessante porque se apropria de fato da obra.

A contradição, no entanto, é o prevalecer do palavrório, ou seja, o fato de o próprio formato da peça e suas escolhas aparentemente tomarem partido do ” nobre”, privilegiando, como ele, a palavra, o intelecto, a sofisticação, a apreensão do mundo somente a partir do discurso. E não me venha tentar convencer que dizer cu bastantes vezes seja aproximar-se do popular, por favor. (Desculpem escrever cu de novo, juro que não estou tentando fazer você rir e que será a última vez nesse texto) Me questiono, para terminar: a opção por este formato – justamente num encontro teatral que tem enorme potencial para se aproximar muito mais do popular por diversas formas – é uma escolha declarada do grupo por um dos lados da luta de classes que ele mesmo expõe, ou uma ” não escolha” , ou seja, uma espécie de fruto do “habitus” do “meio” teatral?

Cotação: P

Breve explicação sobre as cotações do 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos:

Para dialogar com o pomposo nome do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, resolvi cotar os “grandes espetáculos” em cartaz no Recife como PP, P, M e G. Mas, atenção! Decidi inverter a cotação! Isso porque eu sou do time dos que gostam mais daquela coisa de teatro pequeno, com público ativo e pertinho dos atores, do que daquelas peçonas que a gente precisa de binóculos pra ver. Sim, isso é bem “gosto pessoal” e não significa que toda peça pequena no mundo seja fantástica, nem que toda peçona produzida na história do teatro seja um lixo. Assim, de acordo com meu critério, a grandeza nessas críticas ficará medida ao contrário, no sentido de “os menores serão os maiores”. Tipo PP vale mais que P, que vale mais que M que vale mais que G, deu pra entender?


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Outros Hamlets criticados na Bacante:

Quem vem lá

Ensaio.Hamlet

Hamlet, do grupo venezuelano Teatro Del Contrajuego

Hamlet Gasshô

Hamlet, do Capitão Nascimento com o Bradesco Prime


Outros textos sobre o 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos na Bacante:

Meu, que não estava no festival, mas estava no contexto da cobertura

Histórias de Além-Mar

Greta Garbo Quem Diria…

Começar a Terminar

Invasão

A Dona da História

Prêmio APACEPE de Teatro e Dança

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