Começar a terminar

Críticas   |       |    17 de fevereiro de 2010    |    2 comentários

Parte 1 – Introdução ou Da esperança que nos move ao teatro

Eu já sabia que eu não me daria bem com uma peça do Abujamra. Sabia desde o início, desde que li na programação. E ainda era Beckett, aí fudeu de vez. Calma, não tenho nada contra Beckett – quem sou eu?  Estou falando da combinação de coisas e do tipo de espetáculo que eu já podia deduzir que encontraria.

Mesmo assim, posso dizer que estava numa fase otimista da minha vida, já que estava no Recife, onde entrei no mar e nenhum tubarão me mordeu, e além de tudo não chovia, nem alagava diariamente como São Paulo. Talvez por isso, contrariando as premonições, eu fui. Ainda, pra ninguém poder dizer que eu estava mal humorada e que meu mal era fome, comi uma pizza antes mesmo de entrar no teatro – assim também não podem me acusar de ficar pensando na pizza durante a peça.

Tudo certo, entrei feliz no friozinho do teatro Barreto Júnior. E por um momento pensei: não é que pode ser boa essa experiência?

Parte 2 – Convite à sua imaginação

Boa parte do que eu imaginava se concretizou. Por isso, em vez de fazer análises com a raiva que eu pretendia fazer ao sair do teatro, vou convidar o leitor a um exercício de imaginação…

– Imagine um ator muito ruim, daqueles que mal conseguem acertar as pausas do texto ou mostrar que certa fala é uma interrogação. Agora imagine esse ator vivendo o mesmo personagem a vida toda.

– (Essa é pra você que é da geração de Astier Basílio ou das anteriores) Imagine o Ravengar encenando Beckett. Ou melhor, convencendo você de que ele conhece muito, muito, mas muito mesmo a obra de Beckett e que, portanto, pode desconstruí-lo – o que, aliás, eu acharia bem legal se ele fizesse de fato, em vez de limitar-se a prometer isso a peça toda.

– Imagine dois atores-produtores altos bonitos e com lindas vozes – e no caso da moça, grandes peitos; no do moço, peitoral a mostra – se esforçando muito pra transformar em cena o que não poderá ser transformado em cena, porque é um exercício de ego.

– Imagine um ator fingindo que é alguém da platéia inconformado porque em vez de encenar Beckett, Abujamra está falando de Beckett. Imagine que, em seguida, por razões que a própria razão desconhece, esse ator muda de assunto e pede ao Abu uma entrevista, só pra ele poder dizer a célebre frase: “Todo mundo só quer entrevista” e complementar que “odeia dar entrevistas“. E bla bla bla.

– Imagine um figurino meio Grécia, meio cetim, meio… roupa preta.

– Imagine um cenário que ostenta, atrás dos atores, na parede ao fundo do palco, a lista das referências da peça ou, por outra, dos autores que os artistas que ali se apresentam já leram e conhecem – tais como Proust, Joaquim Manoel de Macedo, Sarney, Brecht, o próprio Beckett e os Irmãos Grimm. Ok, eu incluí por minha conta uns nomes na lista pra ficar menos previsível e mais divertido.

– Imagine uma platéia rindo de piadas bobas envolvendo nomes intelectuais porque não rir de “piada inteligente” pega mal.

– Imagine uma peça em que a grande sacada é perguntar onde está a árvore (como uma referência ao cenário de Esperando Godot); a grande ameaça de conflito é prometer que Abu se suicidaria, enforcando-se na árvore se ela estivesse ali; e a grande piada é Abu dizendo que não agüenta mais ver montarem Godot, porque banalizaram Godot, que Godot de verdade é o Godot da primeira montagem – tipo “popularizou, perdeu o glamour, baby”.


Foto de Tika Tiritilli da montagem da Boa Cia para Esperando Godot

– Imagine Abujamra declamando algo pessimista e sombrio sobre o fim, sobre o corpo que está se acabando, ainda que a mente continue funcionando. Imagine isso acompanhado de movimentos óbvios – tipo quando fala do corpo, movimento em baixo, quando fala da cabeça, movimento em cima (como na Dança da Manivela, que deveria, aliás, figurar entre Proust e Brecht na listinha de referências ali do fundão).

– Imagine uma peça que começa e termina com a cena descrita acima.

Parte 3 – Algumas conclusões óbvias que estou repetindo só pra eu mesma não esquecer

Eu tinha imaginado tudo isso, ou boa parte – talvez não os atores pelados e a cena da entrevista – antes de sair da casa confortável que me hospedava pra caminhar até o teatro.

Mesmo assim, é importante lembrar que não deu certo dessa vez, mas é preciso ter esperança! É sempre possível se surpreender positivamente com aquilo que você acha que já odeia, como é o caso da prepotência intelectualóide, das peças sem ter o que dizer sobre o mundo, e da criação de personagens inverossímeis e falsos bufões para a vida. Digo falsos bufões porque um bufão de verdade causa muito mais desconforto, conflito e transformação do que alguns gritos histéricos, sinais de arrogância e respostas grosseiras a repórteres.

Cotação: G


Breve explicação sobre as cotações do 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos:

Para dialogar com o pomposo nome do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, resolvi cotar os “grandes espetáculos” em cartaz no Recife como PP, P, M e G. Mas, atenção! Decidi inverter a cotação! Isso porque eu sou do time dos que gostam mais daquela coisa de teatro pequeno, com público ativo e pertinho dos atores, do que daquelas peçonas que a gente precisa de binóculos pra ver. Sim, isso é bem “gosto pessoal” e não significa que toda peça pequena no mundo seja fantástica, nem que toda peçona produzida na história do teatro seja um lixo. Assim, de acordo com meu critério, a grandeza nessas críticas ficará medida ao contrário, no sentido de “os menores serão os maiores”. Tipo PP vale mais que P, que vale mais que M que vale mais que G, deu pra entender?

***

Outros textos sobre o 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos na Bacante:

Meu, que não estava no festival, mas estava no contexto da cobertura

Histórias de Além-Mar

Greta Garbo Quem Diria…

Encruzilhada Hamlet

Invasão

A Dona da História

Prêmio APACEPE de Teatro e Dança

'2 comentários para “Começar a terminar”'
  1. Carlos Canhameiro disse:

    Obrigado…

    Sou daqueles q sentem um prazer quase indescritível (o “quase” é necessário, pq estou a escrever aqui!) em ver alguém “metendo o pau” no embuste nacional chamado Antônio Abujamra.

    E mesmo q esteja começando a terminar, o antes do começo do término do sr. Abujamra foi muito longo!

    Há braços

  2. Tamber disse:

    This forum needed shiknag up and you’ve just done that. Great post!

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