Kamchátka

Críticas   |       |    11 de agosto de 2010    |    0 comentários

As apresentações de Kamchátka no FIT São José do Rio Preto geraram uma galeria de fotos e três críticas publicadas na Bacante. Como as críticas têm viezes diferentes e complementares, sugerimos a seguinte ordem de leitura:

1. Kamchátka – Por Astier Basílio
2.
Sem título – Por Fabricio Muriana
3. Não só espelho, mas também lente de aumento – Por Juliene Codognotto.
(VOCÊ ESTÁ AQUI)

Mas, claro, você também pode ignorar nossa sugestão de ordem e ler como quiser. É tipo o Jogo de Amarelinha do Cortazar, só que não tão bom.


Não só espelho, mas também lente de aumento

Foto: Marco Albuquerque (Veja mais aqui)

Quando oito pessoas trajadas com roupas sociais deixam suas malas no chão, sentam-se sobre elas e olham fixamente para uma casa, uma porta, uma faixa de pedestres, um carro, um capacete, um mendigo, um carrinho de pipoca, uma criança, um cachorro, uma lata de cerveja, uma pessoa numa varanda… um momento único de estranhamento tem início e, a partir dele, cada uma das coisas observadas ganha novos significados ou recupera antigos sentidos. O mais instigante, no entanto, é que esses sentidos e significados podem até ter um direcionamento, mas cada pessoa participante daquele encontro terá sua apreensão própria.

Em Kamchatka, peça espanhola criada a partir de uma oficina de teatro de rua em 2006, essa dimensão de liberdade na criação de sentidos a partir de um simples foco do olhar se mostra o tempo todo. Isso, no entanto, não é exatamente o que há de novo ou de mais interessante na peça, até porque, por esse caminho, é muito fácil chegar a relativismos e dizer que: “ah, toda obra de arte é assim, a gente propõe uma coisa e cada um interpreta de acordo com suas referências” e mimimi. A grande diferença é que aqui o que se propõe como ponto de partida para a construção dos sentidos são as próprias pessoas, o espaço em que vivem a as relações que elas estabelecem nesse espaço e com ele.

A partir daí, uma “singularidade”, de fato, acontece. A partir dessa disposição de ouvir o público e de transformar-se completamente a partir das atitudes desse público, a obra estará realmente aberta. Sim, eles têm controle da ação, dos tempos e pausas, dos primeiros olhares. Mas utilizam esse controle e os olhares destinados a eles para distribuírem entre todos os presentes o poder de construir não só os sentidos, como também a obra em si. A calma, a paciência de esperar que as coisas aconteçam vindas do público sem que se precise provocá-las é o ingrediente essencial. Então, com todo o tempo do mundo, a interação acontece de verdade.

Sempre me atentei a momentos preciosos de interação entre artista e público. Momentos em que se quebra essa magia estranha que se criou em torno dos artistas (que, pelo meu ponto de vista, todos somos) para tranformar alguns deles em produtos-celebridades a serem vendidos e comprados e exibidos na TV. Já vi alguns momentos assim. Grupos como o Oficina, que fazem isso de maneira mais escancarada e até impositiva, mas que conseguem por esse caminho momentos sublimes como um cochilinho conjunto no meio do palco em Os Sertões – Homem I. Casos como o do Grupo XIX de Teatro, que tem a habilidade de construir fábulas encantadoras a partir de palavras, referências, nomes oferecidos a eles pelo público. Ou, ainda, atores de rua capazes de se deixar afetar de tal forma pelo movimento vivo de seu público que conseguem dar a devida importância ao que está em volta do espetáculo. Um último exemplo que me ocorre é a última criação da Cia do Quintal, o espetáculo Caleidoscópio (tem crítica na Bacante aqui ó), que segue o caminho da improvisação, mas agora em função da construção de uma fábula – e quem dá os pontos de partida, conexão e chegada para a fábula a ser construída é o público. Sim, são momentos memoráveis. No entanto, o encontro promovido em Kamchatka vai além de pegar do público elementos para que os atores contem uma história, vai até a idéia de criar as condições para que as pessoas contem sua história coletiva, criem realmente juntas, revejam seu cotidiano. E isso não acontece em momentos pré-determinados, acontece durante toda a encenação.

Pode parecer que nada de importante será dito ou descoberto se os atores não trouxerem nada para mostrar ou compartilhar como mensagem – ou, ainda, pode ficar aquela coisa meio piegas de promover encontros e abraços – no entanto a disposição e a curiosidade que eles trazem para espelhar e estranhar as lógicas da sociedade são em si extremamente importantes, sobretudo porque não estão presos à necessidade de ser carinhoso ou de fazer rir. Não foi à toa que em Engenheiro Shimidt discutimos, profundamente e sem precisar sequer de uma palavra, a complexidade da propriedade privada e a estupidez com que a levamos tão a sério. E é assim porque os temas estão no mundo esperando e, nesse caso, os artistas estão indo, junto com o público, olhar para eles.

Quando falo da propriedade privada, me remeto a diversos momentos em que os atores, seguidos pelo público, entraram ou tentaram entrar em residências. Extremamente amedrontados, uma foi rude e nos expulsou, puxando um dos atores pelo braço e dizendo “aqui você não vai entrar”, outro fechou o portão eletrônico e soltou os cachorros, outra, no entanto, depois de correr atrás da atriz que a driblou para percorrer seu quintal, se rendeu recebeu a todos com a família em um chá da tarde ao ar livre. Nenhuma das casas foi roubada, depredada, desapropriada. Muitas pessoas foram embora discutindo os limites dos direitos das pessoas sobre os espaços que elas cercaram e chamaram de seus (ou compraram já cercados, enfim).

Há, no entanto, um porém com relação à escolha deste espetáculo para participar do FIT 2010. Se, segundo texto constante no catálogo do festival, trata-se de “teatros que não se configuram como um ESPELHO DO MUNDO” e, ainda, se “não nos reconheceremos – nem a nós, nem ao nosso mundo – nestes palcos”, tem alguma coisa errada com Kamchatka, que, além de espelhar o mundo, coloca sobre ele, a partir da vontade do público e como fazem os bons palhaços, uma curiosa lente de aumento. Tem alguma coisa errada… ufa, que bom.

7 caras e uma moça meio esquisitos que salvaram minha ida ao FIT

Assisti a dois encontros de Kamchátka, ambos no dia 18 de julho de 2010: um às 10h da manhã no distrito de Talhado e outro às 16h em Engenheiro Schimidt, a cidade dos doces maravilhosos.

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