As Três Irmãs

Críticas   |       |    10 de outubro de 2010    |    0 comentários

Moscou, CE

Essa crítica faz parte do registro do XVII Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga. Clique aqui e confira a cobertura na íntegra.

As Três Irmãs

Fotos: Maurício Alcântara. Confira também a galeria de fotos do espetáculo.

Desde o segundo dia do festival de Guaramiranga até o último em que estive por lá, uma montagem de Tchekhov não saia de minha cabeça, graças à apresentação de As Três Irmãs, do Grupo de Estudos e Trabalhos em Stanislavski, de Fortaleza. Apesar de terem despertado essa memória, não foi essa montagem que voltava com muita clareza na memória, mas uma adaptação argentina que vi há 3 anos, no festival de Porto Alegre, e que coincidentemente se apresentaria naquela mesma semana a 3.000 Km de Guaramiranga, no Mirada, em Santos.

Tratava-se de “Espía a uma mujer que se mata”, adaptação de Daniel Veronese para Tio Vânia. Lembrei-me dessa montagem imediatamente que começou a apresentação de As Três Irmãs, quando percebi que o registro cênico escolhido pelo grupo me garantiria algumas boas horas de um teatro realista, com uma tentativa de reconstrução do universo russo do século XIX diante dos olhos da platéia (com direito a roupas de época, cristaleiras e tudo mais), inclusive assumindo como linguagem-base um registro de interpretação do século XIX.

“É impressionante como uma montagem que marca a gente ganha mais significados e camadas até muitos anos depois de tê-la visto, né?” foi o que comentou (não exatamente nessas palavras) Astier ao me ouvir comentar pela terceira ou quarta vez sobre a montagem de Veronese que, da obra original, preservava apenas os personagens e seus conflitos – e demolia todo o resto para construir uma releitura, uma ambientação contemporânea do texto de Tchekhov. A história, naquele caso, era ambientado em um apartamento de uma família de classe média argentina.

Foi justamente esse aspecto “universal” de Tchekhov um dos argumentos do grupo quando questionado por Silvério, um ator que assistia ao debate do dia seguinte, para justificar “o porquê de montar As Três Irmãs hoje, no Ceará” – além de que a ânsia daquela família de sair da província para ir para Moscou “revelava muitos aspectos da sociedade hoje” (isso sem mencionar algumas frases soltas por uma das atrizes durante um longo desabafo, como “não interessa tanto o texto, desde que as pessoas sejam tocadas por ele”, “o século XIX foi um século muito especial”, “o homem é essencialmente um ser mágico” ou ainda “a cultura tem que ir no profundo do ser humano”).

As Três Irmãs

Em determinado ponto do debate, se eu não viajei em meus pensamentos, um ator comentou que teve gente que viajou a Moscou para pesquisar mais sobre o processo. Em algum outro momento, ainda ouvi um “porque nós não tínhamos o tempo para ensaiar que eles tinham em Moscou naquela época”. Revelando mais sobre o processo de ensaios, a diretora Graça Freitas abriu ainda que chegou-se a um momento em que “perceberam que Tchekhov tem que ser realista”.

Nesse momento, lembrei que o Tio Vânia de Veronese também tinha, em grande medida, uma encenação realista (embora cheia de pequenas estranhezas que rompiam com esse realismo o tempo todo) (confira a galeria de fotos da montagem). Mas lembrei também da Gaivota de Enrique Diaz e a Companhia dos Atores (embora o espetáculo Gaivota: Tema para um conto curto não fosse assinado pela Companhia dos Atores) – que não tinha absolutamente nada de realista, mas também fazia uma leitura bacana de Tchekhov destruindo qualquer menção a um tempo específico em que a história ocorre – permitindo, por meio da linguagem bagunçada e auto-referente, que o público (majoritariamente composto por artistas, nos dias em que vi) pudesse identificar-se com os personagens daquela narrativa e amarrar o que era encenado aos dias presentes.

As Três Irmãs

Me intriga o quão emblemática pode ser a metrópole para o olhar de fora dela. Assim como a aristocracia falida do texto era obcecada em iniciar uma vida nova na cidade onde tudo acontece, o grupo também parecia projetar todo o seu objetivo em uma estética que lhes seduzia – ainda que essa estética fosse do século retrasado e não houvesse qualquer busca por um diálogo com o mundo de hoje. Silvério, em um momento do debate, propunha possibilidades concretas de paralelos entre o mundo escrito por Tchekhov e o mundo atual, ao comentar que vive na mesma cidade do grupo, mas que mora em um bairro afastado, e que todas as pessoas que moram ali têm o desejo de partir e morar no centro de Fortaleza, na metrópole, onde tudo acontece. Era uma possibilidade. Ao escrever essa crítica, ainda me lembrei de Moscou, de Eduardo Coutinho, documentário que registrava uma pesquisa que o Grupo Galpão realizou justamente com o diretor-coqueluche Enrique Diaz sobre o texto d’As Três Irmãs. Em minha memória, sobra especificamente o momento em que os atores, questionados sobre aquilo com que eles estavam se debatendo, e nenhuma questão urgente, com alguma possível abordagem potencialmente coletiva, vinha nos depoimentos.

Mas o debate girava pouco em torno da contemporaneidade do texto, e muito – assim como nos demais debates que acompanhei – em torno da forma como tudo aquilo se construía (marcações, interpretação, foco da cena, deveria ser assim, poderia ser assado). Falou-se até mesmo sobre o quanto seria potente uma pesquisa sobre o quanto o frio russo poderia interferir no registro da interpretação, uma vez que interferia diretamente no corpo dos personagens. Em outras palavras, discutiam-se, naquele debate crítico, novas maneiras de aumentar a potência da forma do teatro do século XIX, em pleno ano de 2010, – até que Zeca Ligiero, um dos debatedores convidados do festival, lembrava todos de um dado importante: o texto do século XIX é, sim, muito importante, reflete, sim, muitos aspectos políticos que permanecem no dia de hoje, mas há um detalhe que não pode ser ignorado: de quando o texto foi escrito até os dias de hoje, o mundo mudou! E por isso, é importante que se perceba que, ainda que se opte por uma estética específica, mais importante do que traduzir o mundo russo do século retrasado para o palco, é importante que haja um mínimo de adaptação, de contextualização, para que não vire “historinha esclerosada de museu com três horas de duração”, palavras do próprio Zeca.

Saio pensando ainda em tudo o que se comenta sobre Neva, dos chilenos do Teatro en el Blanco – e que não consegui assistir em nenhuma das muitas oportunidades que apareceram. Queria muito saber o que o pessoal que assistiu agregaria àquele debate, se é que o paralelo que se constrói em minha cabeça cabe nessa discussão. Bem, os comentários estão aí embaixo podem ser um ótimo espaço pra isso (ou eu to viajando, galera que assistiu?).

3 horas de duração, só uma peça assistida naquele dia

As Três Irmãs

O espetáculo foi assistido no dia 5 de setembro de 2010, às 19h, no Teatro Rachel de Queiroz, Guaramiranga-CE, como parte do XVII Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, com entrada gratuita por meio da credencial de imprensa do festival.

Outras críticas do Festival de Guaramiranga:

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– Cacuete – A incrível performance de crendices (em breve)

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