16º Porto Alegre em Cena (2009)

Especial   |       |    29 de setembro de 2009    |    0 comentários

Perspectivas sobre um mesmo olhar

Há muitos anos, setembro é um mês de exceção em Porto Alegre… Não, não é porque acontece o Porto Alegre em Cena, mas, principalmente, porque os gaúchos comemoram o aniversário (durante um mês todo!) da Revolução Farroupilha. O epicentro da festa acontece no parque da Harmonia (aquele em que acampamos esperançosos no Fórum Social Mundial), onde a gauchada se reúne por todo o mês no Acampamento Farroupilha com churrasco, chimarrão, cavalos e bombacha (tipo cidade cenográfica da Casa das 7 Mulheres)
Por obra do acaso, chego à cidade no dia 7 de setembro e como em toda capital brasileira há desfiles militares comemorando o desabrochar da Nação em 1822; a orquestra de tanques em ode a nossa Pátria amada, idolatrada salve, salve. Então, de um lado os gaúchos “a caráter” em homenagem a revolução republicana e separatista de 1835 e de outro o exército nacional em homenagem a grandeza, una, brasileira.
No ônibus, entre cadetes e gaúchos, vejo, de relance, um outdoor laranja: 16° Porto Alegre em Cena.

Perspectiva I – Estatísticas

Nessa edição apresentaram-se 20 espetáculos internacionais (+ dois shows de música); 19 espetáculos nacionais (+ três shows) e 14 espetáculos regionais. Dos 53 espetáculos, assisti 15 – o que representa 28,3% do Festival. Desses 15, 12 eram internacionais (80% dos espetáculos que vi); apenas 3 nacionais e nenhum regional (0%). Sendo assim, minha amostragem, que a priori parecia positiva com quase 30% do Festival, é bastante tendenciosa com 80% de ênfase nos espetáculos internacionais e 0% de generosidade com a cena teatral gaúcha. Há de se ressaltar que das 15 peças que assisti, 4 eram espetáculos de dança (26,6%) e que assisti a um show também (6,666…%).

Perspectiva II – Composição

O Porto Alegre em Cena trabalha com uma hierarquia tácita. No topo dessa pirâmide estão as “grandes atrações” – nesse ano The Voca People, de Israel, e Quartett, de Bob Wilson (em anos anteriores: Peter Brook, Arianne Mnouchkine, Pina Bausch etc) ; logo abaixo vem os espetáculos internacionais do mundo “desenvolvido” – nesse ano, representados principalmente por Patrice Cheréau da França e pelas danças do Canadá; em seguida, os internacionais da “cena da América Latina”, com ênfase no Uruguai e na Argentina. Abaixo dessa primeira tríade vêm os espetáculos nacionais divididos da seguinte forma: em primeiro lugar aqueles “famosos” que estão circulando por todos os festivais como Rainha[(s)]. Em segundo lugar, os espetáculos do “eixo” Rio-São Paulo. Em terceiro, uma amostragem de Norte, Nordeste e outras regiões brasileiras. Por fim, ocupando a base da hierarquia artística, encontram-se os espetáculos regionais.

Perspectiva III – Análise a posteriori

Seria muito bem-vindo algum estudo que elucidasse os conceitos históricos de Festival e Mostra; e que, em seguida, confrontasse-os ao seu uso hoje. No Brasil, há uma infinidade de eventos teatrais que se autodenominam Mostra ou Festival que, no entanto, possuem particularidades que os tornam tangencialmente díspares, despertando a dúvida se deveriam mesmo ser chamados pelo mesmo substantivo agregador. O Porto Alegre em Cena de certa forma resolveu essa questão de nomenclatura ao retirar de seu nome as referidas palavras (embora, todos se refiram ao evento como um “Festival de teatro”) – talvez por isso também o POA em Cena possua um diferencial de essência, em relação a outros eventos do tipo, que remete aos seus objetivos.
O Porto Alegre em Cena chama a atenção pela ligação intrínseca entre evento e cidade. Ou melhor, entre evento e o Estado gaúcho tão conhecido Brasil afora pelo seu “bairrismo” (que outro Estado no Brasil ostenta sua bandeira em cada esquina das cidades? E tem hino! E todos lá sabem o hino do RS!) Trata-se do único evento deste tipo que carrega no título (pelo que me lembre) o nome da cidade sede como sujeito, ou melhor, na composição do nome do evento ‘Porto Alegre’ compõe a posição de agente enquanto o “em cena” refere-se diretamente à cidade sede – é objeto. No entanto, melhor seria que a sintaxe do título fosse inversa.

No caderno do evento encontramos textos dos políticos responsáveis e da figura chave do POA em Cena: Luciano Alabarse. Lá podemos antever algumas linhas interessantes sobre o papel, e objetivos, do “Festival”:

“O Em Cena reelabora nosso cosmopolitismo, atualiza nossa expressão cultural contemporânea e nos integra ao planeta” (José Fogaça, Prefeito de Porto Alegre)

“O time das obras porto-alegrenses, que todos os anos dizem presente ao festival, é, aliás, dos mais inspirados das últimas edições, completando nossa ideia de conectar a capital gaúcha ao circuito dos mais sofisticados palcos do mundo” (Luciano Alabarse, Coordenador Geral do POA em Cena)

Pelos fragmentos acima podemos ampliar o raciocínio da ligação do “Festival” com a cidade. Entretanto, pelas falas acima, a cidade “recebe” a “cena”. Se o “Festival” define-se apenas dentro do contexto “capital gaúcha”, também enxergamos como objetivo do evento certa “auto-missão civilizatória cultural” – ou seja, erguer uma grande festa de atrações externas e “reconhecidas” na cidade de Porto Alegre. A cidade, então, é que é objeto, dentro da natureza do “Festival”.
Há anos, o evento vangloria-se de levar à Porto Alegre esta ou aquela atração cultural internacional ou de referência nacional. A cada ano podemos ler textos introdutórios das edições do POA em Cena que se referem ao histórico de atrações culturais proporcionadas ao cidadão gaúcho. Quase todos os textos oficiais dessa 16ª edição, por exemplo, referem-se a Pina Bausch, Peter Brook, Arianne Mnouchkine, Norma Alejandro etc. – as principais atrações que o evento trouxe em anos anteriores. Reitera-se assim uma característica central do POA em Cena: levar (ou trazer) a cultura “reconhecida” para a cidade de Porto Alegre.

Novamente a hierarquia. Dentro dessa lógica corrobora-se a ideia de que há uma valoração, talvez não tão tácita, dentro da programação, compondo uma pirâmide de atrações. E torna-se impossível não enxergar os espetáculos regionais como meros coadjuvantes das grandes estrelas (vide o número de apresentações dos espetáculos regionais em comparação aos outros, quase um terço menor: enquanto a maioria das peças ficava em cartaz por 2 ou 3 dias, os regionais tiveram únicas apresentações – uma exigência do prêmio Braskem que é disputado entre as peças locais).

Uma lógica que reflete um fascínio acrítico (nacional!) com as produções européias (lembremo-nos das filas infinitas no SESC quando os “mestres” vêm ao Brasil e os aplausos eufóricos – não importa o que se tenha visto etc.) e, no âmbito regional, um fascínio acrítico de todo o Brasil com as produções do chamado “eixo Rio-São Paulo”.

Mas não posso me eximir dessa roda. Pois na minha ânsia de “cobrir” o “Festival” sempre privilegiava a “estrela” do dia. Espetáculo para o qual a grande maioria das pessoas se dirigia (e onde se encontrava) – escolha que impossibilitou que eu assistisse qualquer produção regional. Ou seja, eu também fui seduzido pelas atrações do POA em Cena e delas não pude me libertar.

Perspectiva IV – Critérios

Porém, a categoria “espetáculos reconhecidos” é altamente subjetiva. O critério de valor que alça esse ou aquele ao rol das genialidades configura-se por uma mistura de marketing, custo, empatia individual, tempo histórico etc., valores que mudam constantemente na História. Em Porto Alegre, já há alguns anos quem detém o posto (individual!) de homem-critério, juiz cultural supremo de valor, é o “maestro” (palavra de Sergius Gonzaga, Secretário da Cultura de Porto Alegre) Luciano Alabarse. Ele desfila. É a grande estrela do evento; reconhecido por todos, que cochicham quando ele passa. Na sinopse do espetáculo canadense de dança Crépuscule des Océans encontra-se a sentença: “A apresentação encantou o curador Luciano Alabarse, que a assistiu em Montreal e recomenda o espetáculo com entusiasmo” – não por acaso as filas de espera na porta do Teatro Renascença eram imensas (as maiores do “Festival” depois de The Voca People). Luciano Alabarse é o subtítulo do POA em Cena. Seu “entusiasmo” é autoridade irrevogável de valor estético.

Perspectiva V – Virtuose

Houve muitos espetáculos de dança no 16º Porto Alegre em Cena. Eu assisti quatro. Crépuscule des Océans; Kiss Bill; Tempo Fragmento e In Paradisium. Coincidentemente, acontecia uma Mostra de Cinema na cidade chamada Processos e Criações (inspirada no novo filme de Eduardo Coutinho, Moscou), em que foi exibido um filme super raro de Klaus Wildenhahn chamado O Que Fazem Pina Bausch e Seus Bailarinos em Wuppertal – os procedimentos desse documentário filmado em Super-8 são muito parecidos com os de Coutinho ao filmar Moscou. Os documentaristas passam dois meses com os dançarinos e com a coreógrafa enquanto eles montavam o novo espetáculo Valsa. Entre cenas dos ensaios e entrevistas com os bailarinos há um procedimento inquietante. Filmam-se entrevistas com operários de Wuppertal. Nada justifica tais tomadas, elas inserem-se no meio do filme sem qualquer explicação e, no entanto, escancaram a contradição entre meios de produção, entre arte e sociedade, entre relações de trabalho, entre criação e produção […] Pina Bausch é linda. Numa cena ela segura o cigarro e o isqueiro, está na iminência de acendê-lo, mas não o faz, pois está estaticamente concentrada no ensaio […] Num momento do filme um bailarino diz que Pina não quer que eles “aprendam” a coreografia. Não quer que decorem os movimentos. Não ensaiam muito as danças. É preciso um espaço da vivência, do erro, do imprevisto, do desequilíbrio. Em nenhum dia do ensaio eles repetem os passos…
Nos espetáculos de dança que assisti no 16º Porto Alegre em Cena havia o contrário. Precisão, espetacularidade, concentração e virtuose. Todos eles posicionavam a dança num espaço entre o teatro e a façanha. Assim, todos eram vazios, virtuosos, lindos, entediantes e insuportáveis.
Eu realmente considero-me um ignorante na dança. Por isso a chuva de adjetivos do parágrafo anterior é meu único instrumento de olhar para isso.

No entanto, a oposição esboçada acima revela algo do “Festival” – onde a beleza e o “selo cultural-universal de qualidade” dão o tom da conexão de Porto Alegre “ao circuito dos mais sofisticados palcos do mundo”: a precisão cultural, a possibilidade de levar (trazer) à Porto Alegre cultura refinada, linda, perfeitamente acabada, mundialmente aplaudida.

Tal critério, todavia, converge para uma aleatoriedade de produções, onde se destacam, obviamente, espetáculos muito interessantes, outros belos, outros meramente famosos etc. No entanto, não há interesse em fazer um “recorte” da produção internacional, não há “tema” no evento; os debates (poucos) e oficinas (bem como as peças da “descentralização”) parecem simplesmente cumprir seu papel de contrapartida do uso de dinheiro público. E, assim, tal virtuose é a projeção, pura e simplesmente, da subjetividade pessoal (o gosto) de uma única pessoa: Luciano Alabarse. A sensação é a de uma lista dos “melhores espetáculo (que Luciano viu) no ano”, materializada na cidade de Porto Alegre com muito dinheiro público.

Mas a justificativa, como sempre, é a da cultura que eleva o espírito… Que cultura? Que espírito? Que dinheiro? – perguntas demais, meu caro. Bah!

Críticas das peças do Festival na Bacante:
Diciembre e Neva
La Douleur e Le Grand Inquisiteur

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