Navalha na Carne

Críticas   |       |    8 de abril de 2008    |    14 comentários

“Vivemos uma sociedade muito desigual. Isso é uma constatação e uma verdade encravada na carne de muita gente. Não somos antenas da Paulista buscando pairar acima do mundo com teorias e preconceitos. Viemos afiados para trazer emoção com reflexão. Nossos personagens estão sem grana. E isso faz com que exponham suas vísceras. Que gritem sua falta de amor. Que escancarem a carência em um mundo movido por dinheiro e estratégias de poder. E isso é igual aqui e nas casas de família, nos puteiros da Augusta e nos escritórios da Berrini, isso atravessa os sussurros das paredes e os berros nos travesseiros: o mundo precisa de amor.” Disse Pedro Granato, diretor da montagem de Navalha na Carne em cartaz no Sesc Avenida Paulista, no programa da peça.

A partir do senso comum da primeira sentença do diretor, podemos começar uma conversa franca e ingênua com a obra. Parece que Plínio Marcos vai continuar sendo uma barreira praqueles que têm dificuldades em desrespeitar um autor. Depois de ver pelo menos 10 releituras de suas obras, não encontro uma pra citar como exemplo de apropriação. Cada uma delas queria ser mais respeitosa, não só pelo autor, mas sobretudo pela lógica do benfazer-plínio-marcos.

Neuza Suelí, Vado e Veludo, os personagens de corpo presente em Navalha na Carne, são recompostos nesta montagem com outros corpos, mais atualizados, porém com muito menos potencial crítico, dada a anacronia da encenação. Tudo que está no palco poderia ter sido encenado em 1967, quando a obra foi apresentada ao público, se a ditadura não tivesse uma censura de cunho moral tão forte.

Anunciados pelo rilise, os 30 metros de neon – tecnologia de iluminação inventada em 1910 – compõem a principal fonte de luz da peça. Praticamente sem variações (se considerarmos que acender e apagar é a única), a iluminação ao mesmo tempo revela de forma mais escancarada as entranhas desses personagens e parece preguiçosa, pois há muito mais que poderia ser feito com o neon.

A trilha inexistente é outra contradição que nos traz o vazio das almas que ocupam o palco e a provável preguiça na pesquisa sonora. Ou a falta de grana pro cachê da trilha mesmo. Excetuando-se a cantoria final, tudo o que ouvimos são diálogos e as reações da platéia. Aliás, estas contam muito para os atores.

Não existe quarta parede nesta montagem por conta da escolha (ou a falta dela) da utilização do teatro de arena (dãrrrr) e por haver diversos processos de interação com a platéia. Nestes processos, no entanto, abundam (em homenagem à finada revista Bundas) momentos em que essa interação não altera em nada o caminho por onde orbita a obra e minguam aqueles em que realmente a platéia é necessária (como quando se solicita um isqueiro, que poderia não vir).

Com intervalo de duas semanas, assisti a peça duas vezes. Algumas alterações relevantes: figurino trocado, exacerbação da bestialidade dos personagens e interação com a avenida Paulista (!). Mas nada que alterasse a essência naturalista da montagem e o profundo respeito ao dramaturgo santista, que, vale lembrar, não se levava a sério como fazem seus leitores. Disse o meu pai que ele vendia os seus livros na porta do teatro do SESI, na fila de sua peça. Não sei se é verdade, mas já ouvi também que quem lhe pedia autógrafos, ele retrucava pedindo que comprasse o seu livro. É tempo de comprar todos eles, autografados ou não, e relê-los de verdade.

2 momentos em que pensei que Navalha na Carne poderia ser uma minissérie da globo

'14 comentários para “Navalha na Carne”'
  1. Ana Cecília disse:

    Olá Fabrício,
    Em primeiro lugar, meus cumprimentos pelo aniversário da revista. Acompanho direto desde o começo e respeito muito o trabalho de vocês. Estou curiosa quanto à montagem de “Navalha na carne”, especialmente pelo Gero Camilo, pelo que ele vem tentando propor.
    Abraço
    Ana Cecília

  2. Fabrício disse:

    Oi Ana

    Valeuzão por acompanhar o nosso trampo e continue por aqui.
    Eu também estava bem ansioso pra ver essa montagem, em tese a crítica dele ia entrar antes da nossa cobertura do festival de Curitiba. Mas resolvi dar um tempo a mais pra poder rever. Na estréia tudo é um pouco mais complicado.
    Optei por não falar de atuações na crítica, por saber que praticamente todo mundo vai falar delas. Com um trio como esse (Paula Cohen, Gero Camilo e Gustavo Machado) fica difícil não se falar muito dos atores. Ainda assim, em linhas gerais, acho que, se sua ansiedade é por conta do trabalho do Gero, você não vai se decepcionar. Há que se dizer que ele apelou, pois o personagem (Veludo) é muito carismático.
    No entanto, tendo visto Aldeotas, Cleide, Eló… e O Avarento, acho que esperava um pouco mais da construção dos personagens. Muitas águas pra rolar até o final da temporada e, acho, deve reestrear em outros locais depois. Para rever.
    Abraço e apareça.

  3. Ana Cecília disse:

    Oi Fabrício,
    Com efeito, estava na expectativa do comentário de vocês sobre a peça. Vi Aldeotas, mas deixei passar Cleide Eló e as peras, por negligência. Seus comentários acerca do respeito para com o texto e do anacronismo vieram de encontro ao que eu e uma amiga vínhamos discutindo depois de ver a montagem do Heron Coelho para Gota d’água. A minha amiga, que é bem mais velha do que eu e vividíssima, simplesmente não suportou o anacronismo do texto. Eu fui bem mais tolerante e aberta ao trabalho do grupo, mas acho que fica mesmo a questão do lugar desses textos brasileiros dos anos 60/70 na nossa atualidade, quando o mundo já é outro.

    Abraço
    Ana Cecília

  4. Fabrício disse:

    Oi Ana

    Legal você lembrar de Gota D’Água da Georgette, porque é uma montagem contraditória. Ao mesmo tempo que não traz qualquer inovação pra linguagem do teatro, cativa pela preparação excepcional dos atores e só por isso já faz pensar: “ma como?”.

    Na segunda montagem do mesmo diretor, o Heron Coelho, pra outro texto do Chico Buarque, o Calabar – Breviário, esse anacronismo fica bem claro, por que não há grupo que, numa encenação “tradicional” (pra ser bem redutor) agüente aquelas duas horas de Calabar. Escrevi sobre a peça
    aqui.

    Agora, não é só Chico nem o Plínio Marcos que não são devidamente relidos. É engraçado notar que parece que é alguma coisa relacionada com os autores brasileiros do século XX. Como se tivéssemos a obrigação de reverenciá-los com a montagem, já que seus parentes e amigos ainda estão vivos.

    Muitas montagens do Nelson Rodrigues têm uma forma que, ao se falar o nome do autor, ela já vem na cabeça.

    Eu vi tb uma montagem de Rasga Coração, do Vianinha, incensadíssima pela crítica do Rio de Janeiro e que pra mim podia ir direto pro museu.

    É complicado, mas tem gente se apropriando sim. A montagem de
    Divinas Palavras do Satyros tem uma apropriação clara. Até
    O Avarento do Hirsch, que é bem quadradinho, mostrava a que veio. Tem muita mais gente que sabe fazer, vamos ver se eles conseguem mostrar seus trabalhos.

    Abraço

  5. Não vi essa peça ainda. Mas o que você quis dizer Fabrício, é que nunca viu uma peça do Plínio ´re-concebida´ para o nosso tempo, talvez como os Satyros fizeram com ´Vestido de Noiva´? Beijos.

  6. Fabrício disse:

    É mais ou menos isso, Maria Clara.
    Acho que a palavra mais legal é “recriada”, por que é uma nova criação daquele texto, pra mim.
    Não posso dizer se é como os satyros fizeram com o Vestido de Noiva, porque não vi o Vestido de Noiva. Mas certamente é o que fizeram com Divinas Palavras.
    Abração.

  7. Fabrício… Desde ontem estou pensando e preciso dizer uma coisa: não acredito, mesmo, que um diretor que escolha esse texto e esses atores, possa ter preguiça de fazer qualquer coisa no projeto. Não acredito nisso. Acho que foi uma impressão errada sua. E acho que você forçou um pouco a barra aí. rsrsrs. Beijão.

  8. Fabrício disse:

    Po, Maria Clara, que legal que vc não concorde.
    Nem sei se eu concordo com isso: dizer que foi preguiçoso.
    Por isso, ao longo de toda a crítica, eu sugiro, não afirmo.
    As variáveis podem ser outras, mas fiquei com essa impressão ao comparar o primeiro dia em que assisti com o último. Pode ser e espero que eu esteja errado, mas reafirmo minha sugestão.
    Abração.

  9. Ana Cecília disse:

    Oi Fabrício,
    Engraçado, gostei muito de “Rasga coração”, e não gostei de “Divinas palavras”. Quanto à primeira, achei a montagem muito competente e vi, mais uma vez, que Vianinha tinha algo a dizer. Talvez pelo fato de eu ter estudado essa peça na faculdade, eu tenha uma ligação sentimental, não sei. Por que uma montagem, de qualquer texto, teria que trazer referências diretas à atualidade? Talvez, como estudante de literatura, eu tenha mais paciência com essas montagens que pretendem recuperar o texto com sobriedade. O mesmo aconteceu com “A moratória” do grupo Tapa, que eu confesso que me agradou. E a vocês, daí da revista? Já o “Divinas palavras” eu achei que fez um “abrasileiramento” meio apressado, pouco cuidado. Mas eu posso estar enganada.
    Quando vejo montagens como a do Heron Coelho, penso se tais trabalhos não são como que preparações para incursões futuras com outros textos que não os “clássicos”, que podem estar tendo um papel formativo para o grupo. Pode ser isso? Me corrijam se eu estiver errada. Abraço.

  10. Fabrício disse:

    Oi Ana

    Estou um pouco atrasado com a resposta do seu comentário. Mas vamos lá, ponto por ponto. Eu sei que parece meio esquizofrênico, mas o fato de eu comentar que Rasga Coração pode ir direto pro museu, não quer dizer que eu não goste da montagem. A questão do gosto é a mais complexa pra mim na hora de fazer uma crítica. Eu gosto de Rasga Coração, mas como proposta de um desenvolvimento da linguagem do teatro ela não diz a que veio (a mim, ao menos). Quanto à tua pergunta, “por que um texto tem que trazer referências diretas à atualidade?”, não acho que tenha, mas acho que quando você escolhe montar um texto, você não o faz porque ele é bonito, ou lírico, ou atemporal. Você escolhe montar um texto porque você pretende dizer alguma coisa com ele. E no ato de dizer alguma coisa, via de regra, você não vai “falar” da mesma maneira como o texto “falava” na primeira vez em que foi encenado. Não sei se me faço entender. Um exemplo que o Guzik deu uma vez (se não me engano) era o de que Hamlet é um texto que foi escrito quando se ia ao teatro pra passar o dia inteiro. Por isso Hamlet é sempre editado hoje em dia. Só a edição já é uma releitura, já é dialogar com os nossos dias. Você pode remontar Hamlet ou Rasga Coração exatamente igual a quando foi escrito, mas você tem que querer dizer alguma coisa com isso. No caso de Rasga Coração, a sensação que tive foi de homenagem e isso é bem triste, a meu ver. Sobre o abrasileiramento de Divinas Palavras, tem um critério que eu deixo meio “frouxo” toda vez que encontro uma proposta radical de releitura: o do ruído. Pode reparar como é característica de boa parte das obras contemporâneas o ruído. Seja ele editável pela platéia, escolhido pra se colocar na encenação, ou o ruído por excesso de mensagens por segundo, que pede que vejamos a peça diversas vezes (caso de A Gaivota e Ensaio.Hamlet da Cia dos Atores). Acho que o que dá essa sensação de “apressado” em Divinas Palavras, é exatamente esse ruído do excesso. Esse excesso me dá a possibilidade de um excesso de leituras também, coisa que o Rasga Coração, por exemplo, não dá.
    Acho, por fim, que o trabalho pode sim ser formativo pro grupo, mas que deve ser apresentado como trabalho incompleto, como ensaio, como estudo histórico, não como peça acabada. Acho que quando você vem a público mostrar um trabalho tem que ter muito da sua leitura nele, seja como ator, diretor, cenógrafo ou qualquer outro que esteja envolvido com o processo de criação da obra.
    Seguimos a conversa.
    Abração

  11. Lila disse:

    Achei profundamente indelicado de sua parte chamar a música do final de NAVALHA como “cantoria”, é quase um deboche. Acredito que você não conhece. Sabe do que se trata? Sabe que é uma oração? Um oriki de Iansã??? Provavelmente não conhece o peso daquelas palavras!!! E não conseguiu captar a essência de tudo que significa isso, relacionando-a com a personagem Neusa Sueli, e beleza que é, cantada na voz do Gero.

  12. Fabrício disse:

    Oi Lila
    Não sei não. Já quase nem me lembro, aliás.
    Você me explica?
    Abraço

  13. Júnior disse:

    É verdade, sim. Plínio vivera tão marginalizado quanto seus personagens. Para sobreviver, vendia nas ruas seus livros. Assim, pode parecer q se tratasse de qualquer coisa, mas o que ele ‘vendia’ — pelo preço de um almoço, de um lanche — eram verdadeiras obras de arte.

  14. naget cury disse:

    Porque se ofender com a expressão “cantoria” se isto significa apenas o ato de cantar? Não é um termo pejorativo. Se a musica é cantada em dialeto africano, nada nos obriga a conhecer a tradução. Não senti desrespeito de sua parte na crítica. É uma questão apenas de compreender a colocação que vc fez. Parabéns pela crítica à Navalha na Carne.

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