Temporada de Gripe

Críticas   |       |    13 de maio de 2011    |    0 comentários

Dos barcos que se reencontram

Fotos: Carol Sachs.

Emilliano,

De minha parte, essa crítica vai acabar sendo bem subjetiva, infelizmente, porque parto de premissas bem pessoais pra falar sobre a peça. Espero que não se feche num diálogo só entre nós dois, apesar de eu não fazer nenhum esforço para tensioná-la a uma troca de informações que não seja entre eu e você (esse primeiro parágrafo foi escrito por meu epílogo, o que quem ler a crítica publicada entenderá só um pouco mais adiante).

Ver aquela peça foi uma das coisas que eu mais queria fazer desde que li o texto, meses depois de ter perdido a primeira temporada aqui em São Paulo. Comprei o livro achando que seria a única forma de apreender alguma coisa de uma peça de que alguns amigos falavam muito, e que tinha sido montada por uma das companhias de que eu mais gosto. As fotos do antigo site da Sutil Companhia eram lindas, então eu imaginava aquela montagem em minha cabeça, eu a concebia de uma forma tão clara que eu tinha medo de pegar um avião até o Rio de Janeiro e me frustrar. Acho que essa seria a principal questão que eu ressaltaria para o ponto de vista de meu próprio prólogo, análogo ao personagem da peça que é ausente à trama narrada e que conta tudo o que vai acontecer antes mesmo que cada coisa efetivamente aconteça. Minha ideia era contrapor essa visão com outra voz, a de meu epílogo, que surge após ter visto a peça e que se sobrepõe à voz do prólogo, reafirmando algumas coisas, negando outras, dando outro rumo à narração.

Mau,

Pelas minhas contas há oito anos me deparei pela primeira vez com a Sutil Companhia de Teatro e vi exatamente Temporada de Gripe, no teatro popular do Sesi. Lembro que 3 coisas me fizeram assistir essa peça: o preço (ou ausência de preço, porque a entrada era gratuita), a localização (pra um mineiro em São Paulo, tudo o que fica na Paulista é pertim), e a presença de uma atriz conterrânea (a uberlandense Lavínia Pannúnzio estava no elenco). Passados oito anos, lá vou eu ver a remontagem da mesma peça, na Mostra Comemorativa de 18 anos da Sutil. Puxar na memória resquícios da peça, de uma época em que o teatro pra mim ainda era um hobby, ajudou a entender o que minha ilha de edição tinha escolhido guardar por esse tempo. Cenário verde calcinha, encenação coreográfica, e um estranhamento que eu gostava muito, mas não entendia bem o porquê. Na memória, é mais um borrão, que se eu for pensar no meu próprio umbigo, teve uma influência gigante na forma de pensar o teatro. Mas borrão é borrão, e só faz aumentar a expectativa de ver o que é que aquilo ali ia virar com um elenco diferente (do original só restou o Leonardo Medeiros) em outro lugar (o Rio de Janeiro e seu calor rodrigueano parece deslocado de uma companhia que fala tanto em frio, inverno, solidão), e como seria ler esse espetáculo agora.

Esse meu epílogo traria muito do que conversamos ao sair do teatro e caminharmos pelas ruas do Jardim Botânico rumo a Leblon. Foi legal ver a mostra de repertório da Sutil no Rio, assim como foi legal poder rever numa mesma tarde um espetáculo da fase mais recente do grupo (Não Sobre o Amor, que constatei que realmente não é o momento da companhia que mais me interessa) e, montada no mesmo salão, uma peça de um momento anterior – época em que me atraí pelo trabalho e pela estética da companhia dirigida por Felipe Hirsch.

O que você disse é muito claro para mim, em Não Sobre o Amor, a companhia chega ao clímax de sua estética, eles radicalizam a narrativa e os conceitos que eles trabalharam a vida toda. Porém, de tão sintético e tão perfeitamente amarrado, para mim aquilo tudo se torna hermético e muito pouco tangível para um público que eventualmente não esteja buscando somente uma relação de contemplação com a obra apresentada. Eu, pelo menos, não estava. Mais uma vez cochilei algumas vezes durante a apresentação, tirando de mim a culpa por não ter gostado pela primeira vez por achar que era por ter ido cansado ao teatro do CCBB de São Paulo.

Acho que rever as duas peças – Temporada de Gripe e Não sobre o amor – que tinha visto em momentos muito específicos da minha vida (a primeira quando eu comecei a virar espectador de teatro, e a segunda quando este já pagava as minhas contas), no mesmo dia e local foi ao mesmo tempo surpreendente e questionador.

Não sobre o Amor radicaliza de tal forma a estética da Sutil, que eu fico imaginando o caderno de encenação do Felipe Hirsch cheio de Storyboard, quase como um diretor de cinema, com tudo milimetricamente marcado, pensado e executado (mesmo que no dia em q vimos a peça o projetor estivesse uns 3 centímetros inclinado para a esquerda, o que fez faltar precisão nas projeções). Além disso, a dramaturgia construída para o espetáculo não dá brechas pra nenhum tipo de aresta. É síntese, é em si, e eu não consigo explicar porque o diálogo se estabelece entre o espetáculo e eu. Vai ver que é porque penso Não sobre o amor quase como uma obra de arte em uma galeria e não como um espetáculo de teatro.

A ida ao Rio poderia ter sido para constatar algo que eu não queria: que a Sutil Companhia estava entrando em uma fase que eu considerava terrivelmente maçante, visto que as últimas obras deles que eu havia visto tinham sido justamente Não Sobre o Amor, Viver sem Tempos Mortos (que achei bom mas não me empolgou em instante algum), Cinema (que eu detestei) e Insolação (filme de Felipe Hirsch e Daniela Thomas que me hipnotizava pelas imagens e me adormecia rapidamente por eu não encontrar qualquer ponto que abrisse algum tipo de diálogo comigo).

Infelizmente não vi Cinema e nem Viver sem Tempos Mortos. Insolação pra mim ainda é uma incógnita. Ao mesmo tempo em que tem uma fotografia deslumbrante e toca em temas potencialmente ricos, deixa tudo no ar. Aí as coisas não encontram o equilíbrio. Fica no meio termo entre a síntese estética de Não sobre o amor, e a síntese polifônica de Temporada de Gripe.

Temporada de Gripe foi um espetáculo revigorante nesse sentido. O texto, do mesmo Will Eno responsável pelo roteiro de Insolação, conciso na narrativa dos dois frágeis personagens que se aproximam afetivamente dentro do ambiente controlador e opressor de uma espécie de hospital psiquiátrico, contrapostos pelas figuras do médico e da enfermeira, mais velhos, ridiculamente racionais, quase robóticos. Que delícia é ver a Erica Migon em cena. Que prazer é ver ator brincando em cena, tornando seu personagem não apenas uma combinação de leituras e interpretações, mas também uma figura por quem conseguimos sentir qualquer tipo de afeição inesperada. Foi um alívio poder rir a cada frase e reação daquele médico e principalmente daquela enfermeira com aquele registro de interpretação tão estranho.

O texto de Eno possibilita a efetivação do jogo teatral, e a opção por três tipos de registros de interpretações distintos conseguem potencializar a polifonia da dramaturgia e evidenciar a racionalidade da direção da direção de Felipe Hirsch. O naturalismo do casal doente nos aproxima da cena, o tom que vai entre o farsesco e o expressionismo do médico e da enfermeira (com diálogos que lembram muito Beckett) dá o contraponto ao casal romântico e propõe reflexão através do estranhamento, e o tom épico do prólogo e epílogo explora em cena o jogo, controlando as cenas, criando situações e deixando claro para o público que tudo ali não passa de teatro.

Dois personagens do plano do “real” (um núcleo mais sentimental, romântico) e dois personagens representando o tecnicismo e a frieza da ciência (ainda que, vez ou outra, deixando despontar uma beirinha de humanidade por trás da voz da ciência) são conduzidos, sem saber, por outros dois personagens, alheios à narrativa, um prólogo e um epílogo que fazem as vezes de narradores e autores do espetáculo – com uma diferença temporal entre a intenção e a conclusão da obra, diferença esta que faz com que o prólogo, romântico e otimista, se desespere com o que acontece ao desenrolar do texto trágico, enquanto o epílogo, mais racional e frio, despido de qualquer otimismo e conformado com o fim que toma os personagens – alerta o público de que o drama encenado naquele impressionante cenário verde-calcinha da Daniela Thomas não é triste por se tratar apenas de uma invenção, por falar de pessoas que não existem senão na imaginação de quem os cria.

O silêncio que se instaura no meio do segundo ato é a representação dessa impotência do criador-espectador. A luz fica mais fria, o cenário mais impessoal, e tudo se torna extremo. O médico se deforma, a mocinha morre e o prólogo já não sabe por onde caminhar.

Nietzsche tem um texto de que gosto muito, em que ele fala sobre barcos que se separam e cruzam oceanos distintos e que talvez nunca mais se reencontrem porque simplesmente tomaram rumos diferentes – e que não há nada de triste ou de feliz nisso. E que um dia esses barcos poderiam voltar a se encontrar e celebrar festas, assim como poderiam nunca mais se ver. Eu achava que meu barco e o barco da Sutil Companhia tomavam rumos diferentes – uma vez que o teatro que mais me interessava eu não enxergava mais nessa companhia que acompanhei por 10 anos, desde antes mesmo de começar a estudar, acompanhar, fazer e escrever sobre teatro.

Às vezes, por vontade de fazer outras viagens esses barcos acabam se separando. Não vejo sentido no teatro que perde a vontade de experimentar e fazer outras viagens. Essas viagens podem ser entediantes, chatas e não dar em nada, mas são fundamentais pra compreender em que oceanos estavam viajando antes e onde serão os próximos locais para ancorar os barcos.

Obrigado por ter me chamado pra ver essa mostra no Rio. Temporada de Gripe meio que trouxe à tona muita coisa legal que vale a pena ser lembrada, ajudou a refrescar minha memória sobre um teatro que me interessa (e aqui falo de uma perspectiva estritamente pessoal mesmo), cheio de fissuras que permitem um diálogo e uma fruição mais natural do público (ou ao menos minha). Semanas depois voltei a sentir isso ao ver a remontagem de Pterodátilos, também da Sutil, aqui em São Paulo – mas Temporada ainda tem uma dramaturgia e uma linguagem que me interessam mais. De qualquer forma, ambas as peças me interessam muito mais do que monolitos de supremacia da forma estética sobre o diálogo com quem lê a obra.

Engraçado o quanto a gente acaba conhecendo muito as pessoas a partir dos seus interesses. E quem me conhece sabe que apesar de Temporada de Gripe ter me interessado muito, Pterodátilos estabelece comigo um diálogo infinitamente maior. E pra rasgar a seda, eu que tenho q agradecer por ter aceitado o meu convite pra ir ao Rio, numa véspera de carnaval, pra ver a Sutil.

Valeu,

Mau

Abçs,

Emilliano

2 barcos em contato com alguns outros numa cidade portuária

A peça foi vista em 27 de fevereiro de 2011, às 21h, no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Os ingressos custaram 50 reais cada, mais a taxa de conveniência da compra pela internet.

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